Fim da MTV: ficamos saudosistas ou a educação sentimental piorou?

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Estou parada em frente ao televisor de tubo de uma colega da escola que se chamava Roberta. Ela diz que o irmão mais velho vê aquilo o dia inteiro. "É um canal", ela me explica, que fica em outra antena. "É ali que se vê música. Vê música?", eu pergunto intrigada. "Sim, cada música vira um tipo de filminho que chama videoclipe", me explica a Roberta.
Quem está na TV é Gabriel, o Pensador, expondo mulheres que usam biquínis neon e cangas amarradas como "gostosas e burras". "Uma noite e nada mais", ele ensina. Eu estou fascinada pelo conceito de 'música para ver' enquanto aprendo um pouco mais como ser machista. Eu nem sabia ainda quanto seria custoso me livrar de conceitos que desprezam mulheres que digeri tanto sem nem perceber. Mas em 1993, eu pedia para ir à casa da Roberta diariamente.
O canal mágico que conheci na periferia de São Bernardo do Campo chamava MTV — a pronúncia da sigla correta era inglês. Anos depois, Caetano Veloso disse que podia pronunciar como bem entendesse, mas aí eu já tinha aprendido "êmitivi".
"What's up?", música das 4 Non Blondes, contrapunha a misoginia do tal Pensador: "Entendi que o mundo era baseado nessa irmandade dos homens, seja lá o que isso signifique". O filminho, dessa vez, mostrava uma moça "cantando a plenos pulmões" que se sentia meio peculiar e queria saber o que estava rolando. Depois de uns anos, o próprio Gabriel reviu a postura e releu a Loraburra em "Evolua", explicando que mulheres deveriam ser lidas para além dos estereótipos de gênero.
Tinha mais nas maravilhas que saiam daquela TV. Em 1994, Steven Tyler estava amuado perto de uma janela dizendo que tinha um tempo em que o amor não era lá muito amigo dele. Alicia Silverstone entrava em cena pegando geral porque tinha algo como "diabos nos beijos".
Seriam beijos demoníacos? Depois ela era assaltada, e então caía de um viaduto e depois... vocês sabem o que acontece no clipe de "Cryin'", do Aerosmith. Em 1997, ele mesmo dizia que "tinha um buraco na alma que estava o matando para sempre". No ano seguinte, ele "não queria esquecer nem uma coisinha". Tyler é seguramente o professor coadjuvante da minha educação emocional.
Pelos dez anos seguintes àquela tarde no ABC eu fiquei grudada no canal tal como a palha de aço que adornava a antena. O impacto dos nacionais — os Titãs que me garantiam que a chama de um determinado isqueiro ia incendiar a cidade — construiu muito do que eu sou.
Nessa semana, a MTV anunciou seu fechamento dos canais musicais no Brasil. Por aqui, a comoção já começou em 2013, quando as portas da emissora no Sumaré foram trancadas com programação especial solene e saudosista. Uma geração vibrou com as memórias de personalidade forjadas por pegar o telefone (fixo e de fio) e ligar várias vezes para ver sua música favorita entre as 10 mais do dia. Shows exclusivos viraram álbuns clássicos que mudaram a vida de muita gente.
Astrid Fontenelle, Sabrina Parlatore, Marina Person, Gastão Moreira, Edgard Picolli, Cazé Pecini e outros ditaram moda e mostraram para uma geração inteira o que era ser descolado.
O consumo mudou ou a gente perdeu?
Hoje o consumo mudou. A geração atual acredita que a tela de tubo da Roberta é objeto de museu. As tardes vendo MTV depois da escola parecem um comportamento ultrapassado: a lógica atual é que cada um tenha sua tela vertical. O jovem de hoje ainda cresce em bando? Influencers sem qualidade são os VJs da vez — eu estou muito saudosista ou perdemos demais nesse processo?
As coisas mudam. Os tempos evoluem. Perdemos a capacidade de esperar às 18h do Disk MTV para assistir o clipe favorito se o YouTube oferece absolutamente tudo várias vezes por dia na hora em que eu quiser. Na Internet, tem até o que eu nem sabia que precisava muito ver. Mas tem tanta coisa que eu gostaria de não ter visto...
É claro que as coisas mudam, não há como lutar contra o aceleramento da história. Porém, dia desses, no lançamento da áudio série de "Orgulho e Preconceito", da Audible, eu fechei meus olhos e ouvi um trecho da novelinha de rádio contemporânea. Não é mágico que tenhamos espaço para testar o sensorial graças à tecnologia em tempos tão acelerados?
O fim da MTV me faz zelar pelas Robertas de hoje, aos 11 anos, sendo sentimentalmente educadas pelo TikTok. Quando a tal da velocidade videoclíptica vira a única maneira plausível de se comunicar, mas agora em 15 segundos, talvez estejamos perdendo coisas demais pelo caminho.
Que possamos, como sugeriam os publicitários da MTV Brasil nos anos 90, desligar a TV, ou seja, lá o que tivermos na mão, e ler (ouvir?) um livro. Escolher uma música que merecesse o telefonema para o Disk MTV. Fazer uma coisa de cada vez. Usar cada facilidade do agora, quem sabe, mas ser feliz como antes.





























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