Luciana Bugni

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Opinião

Se Odete Roitman deixou tanta saudade, agora mulher pode falar o que pensa?

Eu estava entrando no pilates, quando ouvi uma colega dizer o que médico reclamou que ela é muito pudica. A questão é que nos últimos 60 anos, desde que conseguiu ficar em pé pela primeira vez, na primeira infância, ela foi ensinada a manter sempre as pernas bem fechadas. Uma elegância estereotipada como "é assim que senta uma mulher". Ela levou para a vida e a consequência hoje está em uma lesão por sobrecarga no quadril: não é natural transformar, por hábito, o apoio de duas pernas em uma base só e o corpo sentiu.

Não é exclusividade dela. A gente aprende desde muito cedo as maneiras como uma mulher deve se portar. Isso inclui o policiamento das pernas que insistem em se separar, já que é muito mais confortável sentar livremente, poupando os músculos adutores de esforço. E também está no pacote não dizer impropérios. "Não é de bom tom, meu bem".

Odete Roitman em "Vale Tudo", aliás, transformou a frase acima em seu bordão. Elegante e bem vestida, mantinha certamente as pernas fechadas e os fios de cabelo no lugar a custo de muito laquê. Um truque excelente para sair falando o que bem entendia. Diante do lamento pela morte de um de seus desafetos? "É isso, mais uma pessoa viva morreu"

Diante da mágoa do filho por sua incompetência na maternidade? "Eu não nasci para ser mãe, nasci para ser um pai ausente". Quem tem coragem de dizer algo semelhante? Quem tem bravura para confessar algo que de certa forma está no imaginário de todos? É lógico que deve ser muito mais fácil ser um pai ausente bem-sucedido e festejado por qualquer atitude mínima. Difícil é falar em voz em alta.

Deixa eu tentar: eu queria às vezes cuidar de meu filho como se eu fosse um pai ausen.... não consigo. Algo em mim me proíbe de confessar o inconfessável, por mais que seja verdade. É cansativo educar crianças. Tem vezes em que você gostaria realmente de priorizar outras coisas, ué.

Essa tentativa de dizer o que alguém (a sociedade? Minha mãe?) me ensinou que era incorreto me remete à indigesta personagem principal de "o que resta a partir daqui", livro da escritora Flávia Braz que retrata uma cuidadora de idosos sem a menor paciência para o próprio ofício. Ela tem seus motivos, vamos entendendo na narrativa. E, ao dizer o que pensa motivada por um acúmulo de traumas, vai ganhando nossa simpatia.

"Isso ela tinha de sobra. Se todo o resto lhe faltava, e ainda falta, se a lista das faltas é enorme, como um pergaminho que não cansa de dar voltas em torno de si, desta ela não sofre, porque tolice e ingenuidade a Madalena tem de sobra", ela diz de uma colega de trabalho sempre muito gentil. "Velha inconveniente, claro que acordou", reclama sobre a idosa de quem deveria cuidar. "Confirmando que eu, mesmo tendo nascido mulher, herdei o gene de mula dessa leva toda", brada a respeito de si mesma.

O pessoal fala que gente assim não tem filtro. Irônico, nas pernas fechadas que aprendemos que é o certo ou no jeito de postar nossas fotos online... para tudo há um filtro. Mas quando Odete Roitman passa nove meses no ar fazendo e dizendo atrocidades, tudo que deixa é saudade. Menos filtro, mais verdade?

Beatriz Segall, a antiga Odete, disse em uma entrevista em 1989 que ficava chocada com a aceitação da morte da personagem como uma maneira de vingar seus desmandos— algo que de fato foge da lei. Enquanto dizia isso, puxava a saia de seu terninho até cobrir um pouco mais os joelhos, bem fechadinhos. Fina.

Somos de uma época que vilã de novela não podia ser capa de revista porque vendia menos exemplares. As atrizes eram xingadas na rua. Hoje dizer impropérios impublicáveis outrora rende afeto. A Odete de Débora Bloch faz o pessoal criar bloco de carnaval no Rio de Janeiro. A própria atriz comenta que iria, se estivesse viva. Vai ao samba e se acaba. E faz publicidade de sanduíche. Carisma.

A personagem de Flavia Braz vai aterrorizando o leitor com seu jeito de ver a vida e o outro sem nenhuma compaixão. "Disseram que o personagem acompanha o autor até terminar de escrever o livro. E eu tomava um susto cada vez que entrava no meu carro e via essa diaba dessa mulher lá", ela disse em um evento na Flip. O susto vira inveja rápido. A diaba dá mulher pelo menos pode ser sincera. E a gente?

A gente anda doida para sentar de perna aberta e dizer aquilo que nos ensinaram que não era de bom tom, meu bem.

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