Abuso de Kami na novela não é pesado para o horário, é pesado na vida

Ler resumo da notícia
Por volta das 19h de segunda (22), o público de "Dona de Mim", na Globo, perdeu o fôlego. A sequência da trama que mostra os desdobramentos de um abuso sexual revirou estômagos e dividiu opiniões: afinal, precisa mostrar tanta violência no horário em que se busca o alívio para os pesos que já foram difíceis de serem carregados durante dia? E o que a gente faz com as crianças na sala?
Kami (impressionante interpretação de Giovanna Lancelotti, que coloca o trauma no sofá na nossa casa) está encostada em uma parede tremendo enquanto tenta se vestir. Está suja porque foi abusada em um local que lembra uma construção empoeirada e abandonada. As cenas não mostram violência. Exceto pelo momento em que um homem a persegue e consegue imobilizá-la, não há cena explícita do crime. Há o efeito dele na pele, na voz, nos tremores de Kami.
Cambaleando pelas ruas, ela tenta puxar a camiseta como se pudesse cobrir o shorts e a vergonha que está sentindo. Em uma esquina, vomita. O nojo que sente de si vem à boca do espectador. Ela está apavorada com as marcas que nunca mais vai conseguir tirar de si. Kami foi estuprada.
No banho, momentos depois, ela tenta se limpar em vão. Liga para uma amiga para pedir ajuda para buscar os filhos na escola. Chora com um fio de voz ao telefone. A amiga percebe que algo não corre bem e vai até sua casa. Ela conta o que houve, sem dizer verbos que signifiquem agressão. Um stalker digital "conseguiu o que queria" e ela "não conseguiu evitar".
O que dá então é de um didatismo brilhante. Kami explica que gostaria de se livrar da própria pele. Esfregar uma palha de aço. Arrancar tudo. "Estou imunda. Meu cheiro está diferente", ela diz. O trauma de fato fica impregnado no corpo. As marcas invisíveis são subcutâneas. Permanecem à espreita pelo resto da vida. Kami descreve ali claramente a sensação de ter perdido o controle de seus sentidos. Ela foi violada. Tudo que era seu — a liberdade, a coragem, a leveza — foi subtraído.
Léo (Cara Moneke) a orienta a ir à delegacia. Pegam as roupas que ela colocou na máquina. Kami diz que toda vez que tenta sentir raiva do agressor só sente raiva de si mesma. O trauma também faz isso e dá uma profunda sensação de que poderíamos ter evitado a violência. Como se fôssemos nós, e não o estuprador, os responsáveis pela atitude. Aqui, nunca é demais lembrar: a culpa nunca é da vítima.
A delegada deixa claro que não vai julgar. Explica que as roupas não poderiam ter sido lavadas. Mostra o passo a passo do processo de caça ao criminoso. Acolhe.
A sequência é de uma força surpreendente não só para cada mulher que é estuprada a cada 8 minutos no Brasil, mas para todas as outras mulheres que tem medo de ser. É cedo falar disso às 19h ou com o dia claro? Ué, o estuprador acha cedo abordar mulheres à luz do dia, com o uniforme de trabalho, como na realista cena da novela? Não acha. Se tudo é oportunidade para violência, que usemos todas as oportunidades para expor a verdade. Deixem as crianças na sala.
Não tem horário ideal para falar sobre segurança. Mostrar o protocolo a qualquer momento do dia é utilidade pública. Descrever o acolhimento adequado é generosidade. A violência é pesada mesmo e infelizmente não tem horário para acontecer.
Falar sobre isso, diferentemente do que tem sido comentado por aí, não agride. Pelo contrário: pode até prevenir agressões. Falemos mais. Falemos disso até pará-los. É nossa única arma de proteção.
Você pode discordar de mim no Instagram.





























Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.