Luciana Bugni

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Opinião

Coitada da Melania: imagina preparar o almoço enquanto escuta Trump falar?

O nhoque comprado na padaria vem em um saquinho à vácuo. Na TV, Trump está menos laranja que o habitual, pegando o microfone na ONU, instituição que ele despreza. São pouco mais de 11h da manhã e por mim eu já estaria almoçando. Já dava para almoçar em Nova Iorque também, mas Trump vai ter ainda que caminhar umas duas quadras compridas para chegar naqueles restaurantes de steak que custam mais de 100 dólares por pessoa ali perto daquela região.

Trump está bravo — não sei se é a fome —, mas agradece a presença de todos. Agradece a presença da própria mulher a quem ele chama de primeira dama e em quem ele parece não encostar desde muito antes do primeiro mandato. Bem, não tenho nada a ver com isso. Ele diz que o teleprompter não funciona. Ele agradece de novo.

Aqui no Brasil, tem um pouco de molho que sobrou da carne de panela de ontem. Da para misturar tomates, cebola e fazer render. Tem medalhões de filé-mignon, hoje o negócio aqui está mais chique que Upper East Side. Decidimos acrescentar alecrim à mistura. Trump segue falando.

Ele diz que algo muito grave acontecerá ao responsável pelo teleprompter que falhou. Eu me imagino na pele do moço suado que, às margens do East River, tenta plugar cabos. O que pode acontecer com esse moço? Pico cebolas. Trump repete "eu, eu, eu" algumas vezes seguidas. Imagino Melania picando diariamente cebolas para rechear seus "zlikrofi", um bolinho esloveno de pronúncia complexa, feito de massa fina recheada de batata, cebola e toucinho. Acompanha carne de cordeiro. Não acompanha o resto do molho da carne de panela de ontem. Nisso, eu e Melania somos completamente diferentes. Ela não é de fazer render.

Trump me perdeu nos primeiros três minutos de fala, quando explicou o mal que os imigrantes fazem ao seu país e os ameaça de mandar para casa ou para um lugar bem mais longe de isso "se é que vocês me entendem". "Ele está ameaçando as pessoas de morte?", eu pergunto aqui do Brasil. O que é bem mais longe que a própria casa das pessoas? Marte? O túmulo?

Imagino Melania fermentando o repolho para o "jota", uma sopa de camponeses eslovenos que ela deve sempre preparar em casa. Leva feijões, batata e pedaços de carne de porco defumada. Trump anda pela cozinha roubando um pouquinho de algo que lembra bacon enquanto lê a primeira versão de sua fala na ONU. Está ensaiando com a esposa, como a gente que é comum faz antes de grandes apresentações. "O que é bem mais longe que a casa deles, my love?", ela pergunta graciosa. Trump se irrita. Não gosta quando sua fala gera dúvidas. E parte para o outro parágrafo, em que se gaba de ter acabado com guerras das quais não nos lembramos exatamente. Melania aproveita para, em silêncio, tostar a farinha de trigo para o "zganci", um tipo de polenta granulada secular, e não pergunta mais nada.

A água aqui em São Paulo já ferveu. A carne já dourou. O nhoque está lá dentro quando Trump fala de escada rolante na TV. Cita Melania e sua boa forma. Diz que a ONU não serve nem para arrumar teleprompters nem fazer escadas rolantes. "É isso que eles fazem por mim", ele reclama, em mais uma citação de si mesmo. Organização das Nações Unidas, diz a sigla. Trump sugere que elas se unam para não atravancar seu caminho. Eu sinto a raiva com que Melania pica maçãs a cada almoço para preparar sobremesas típicas de sua terra natal. Imagina ouvir esse senhor egocentralizar o discurso todos os dias?

O nhoque desanda e esfarela no Brasil. Será que é assim que fica o farelo do "zganci"? Onde eu estava com a cabeça quando achei uma boa ideia confiar na iguaria de padaria? Talvez pensando na terceira guerra mundial. Talvez nas ameaças contra meu país feitas pela maior potência mundial só porque aqui uma importante parcela da população gosta mais de democracia do que de ditadura?

Mas penso profundamente em Melania Trump, essa guerreira imigrante, ralando na cozinha, se esmerando em almoços enquanto ouve essa ladainha. Quantos "prekmurskas gimanicas" desandam ao som de tanto absurdo? Será que o "potica", o doce mais amado da Eslovênia, queima cada vez que ele se contradiz?

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Ih, pera lá: ele está dizendo que abraçou o Lula. Que nosso presidente é um cara legal, sim. Que vão se encontrar na semana que vem e comer um "golaz" preparado por Melania. A versão eslovena para o goulash húngaro nada mais é do que a carne de panela desse pessoal. Ufa! Temos um denominador comum.

Abro uma caixa de macarrão para compensar o estrago do nhoque que Trump matou. Meu marido me oferece uma cerveja às 11h42 de uma terça-feira (eu recusei) para aliviar a irritação com o blablabla laranja. Deve ser dura a vida da primeira dama mesmo.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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