Luciana Bugni

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Opinião

Epidemia de Marco Aurélio: todo mundo quer dar banana para o Brasil?

"Precisa implodir esse país", diz um amigo frente às novidades políticas da semana. "Eu vou imigrar. Vender algodão doce em algum parque é melhor do que viver aqui todos os dias", responde o outro. É só uma manhã de terça-feira e eu nem levantei ainda. Estou correndo os olhos nos grupos de Whatsapp e parece que a solução da galera é alugar o Brasil, como sugeria Raul Seixas. Está tudo pronto aqui, é só entregar.

Alguns milhares devem sair às ruas para protestar nas próximas horas. Gil, Caetano e Chico, incansáveis, se unem a eles. Há quem lute. Parecem poucos, porém, frente a tanto desvario. Por que tanta gente desistiu dessa grande pátria desimportante a quem não iriamos trair?

Minha memória volta 37 anos no tempo, na primeira versão de Vale Tudo. Desde aquele momento em que Marco Aurélio (Reginaldo Faria) desviou todo o dinheiro que podia da empresa da ex-sogra e conseguiu fugir para o exterior, dando uma emblemática banana para o povo, muito mudou. O país em 1988 era outro. Tínhamos muitas decepções na bagagem, uma inflação galopante que tornava proibitiva a compra de leite no fim da tarde - de manhã, o preço era outro —, e sonhos que não cabiam nos bolsos de ninguém.

Havia, porém, uma certa esperança. Renato Russo vinha cantando a frase do escritor austríaco Stefan Zweig: o Brasil é o país do futuro ("quero tudo para cima"). A abertura da redemocratização também animava quem havia penado nas mãos da ditadura. "Era um cansaço muito grande, mas um esperança extrema. Porém a economia bagunçava tudo e nada funcionava, plano atrás de plano. O Marco Aurélio vai embora como quem diz: 'já roubei o suficiente e agora preciso de um lugar onde todo esse dinheiro funcione, para que eu possa viver'", diz a pesquisadora de história das novelas Cintia Marcucci.

Os tempos foram mudando aos poucos. Seis anos depois de "Vale Tudo" ir ao ar, um dos planos econômicos funcionou. O brasileiro entendeu que o Real poderia estar pau a pau com o dólar, se abriu para importações e finalmente alcançou o objetivo da viagem à Disney com certa facilidade. Não tem nada que uma tiarinha com as orelhas do Mickey não cure. Ver como as coisas funcionavam lá fora, porém, não encheu ninguém de vontade de fazer igual por aqui. Construir uma civilização correta do zero? Para quê? O futuro de Zweig foi ficando para depois até não ser mais como era antigamente. Quanto mais o brasileiro passava 15 dias por ano em outro hemisfério, mais vontade ele tinha de dar a banana para a terra Natal.

O brasileiro com muito orgulho e muito amor não dá as caras desde 2002, quando Ronaldo resolveu aquela Copa num domingo de manhã no Japão e nos deu o penta. Quer dizer, a cada quatro anos, quando Daianes e Rebecas dão piruetas em um tablado para o mundo todo ver, a gente fica patriota, sim.

Mas no resto do tempo, é desgosto. Um patriotismo ingênuo — quando não é perigoso, travestido de yankee. É um artista de circo se candidatando a um cargo público com um slogan que mente que "pior que está não fica". Ficou. É Copa no Brasil com desvio de verba pública. É BeloMonte destruir o Xingu enquanto assistimos o enriquecimento de quem já é rico. É o soterramento das populações originárias. É violência policial. É condução criminosa de pandemia — não dá para esquecer as valas que apareciam no jornal para acomodar os 700 mil mortos para os quais o então líder da nação não dava a mínima. É boi, é boiada, é bala. É tentativa de golpe. É retrocesso.

O Brasil do fim dos anos 80 pulava em seus pogobols, alisava o cabelo de uma Barbie só (quem precisa de tantas?), e brincava com seus Lango-Lango na rua. Anos depois, em 1992, entendia com a turma de Marcelo Negrão, no vôlei, que era um pouco de ai ai ai, mas também dava para engatar o "puxa e vai". Vai pra onde?

Hoje, um Brasil preguiçoso tecla enfurecido que quer abandonar esse cemitério indígena. Uns poucos acreditam no poder da rua, em manifestação. Ninguém quer mais conversar com quem pensa diferente como se a divergência de opiniões levantasse muros e impedisse o que há de mais rico: a troca. A letargia tem um mantra conformista que se comprova verdade a cada dia: "isso aí não vai dar em nada". Nem força para comemorar vitória o brasileiro tem, esperando apenas se esquivar da próxima bordoada.

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Eu entendo meus amigos que, frente às surpresas provocadas por políticos que não se cansam de decepcionar quem acredita em honestidade, jogam a toalha. É uma epidemia de Marcos Aurélios dando bananas discretas para a terra de palmeiras onde canta o sabiá. Marco Aurélio, aliás, o próprio, foi repaginado na versão de 2025. Um Alexandre Nero bonito, atraente, bom amante e com carisma pautado na suposta excentricidade de não ter traço algum de empatia. A gente está tão cercado de vilões que acaba torcendo para o menos pior. "Esse pelo menos não rouba de mim", deve pensar alguém.

O brasileiro, na lona, tenta reunir forças para coletivamente pautar o que espera de transformação. Sem a mala de dinheiro de vilão de novela, projeta o recomeço em venda de sobremesas tóxicas e coloridas para crianças que falem outro idioma. Esses países, porém, não querem receber estranhos, ensimesmados com seus próprios dilemas. Plutão é longe, me diz Cintia Marcucci.

Quando acabou "Vale Tudo", novela que Renato Russo adorava, ele já cantava as "Duas Tribos" que bradavam "o bem contra o mal". Pelo menos ali tínhamos paz, tínhamos tempo, chegava a hora e a hora era aqui.

Hoje, contaminada pela marcoaurelice que afetou todo mundo que me cerca, tento pensar que o país que tem carnaval, pão de queijo e por do sol em Ipanema merece algumas novas chances. Um cansaço me fisga a energia. Quanto será que custa um algodão doce?

Copacabana hoje deve ferver de indignação. Eu, do sofá em São Paulo, tento manter a energia inconformada que sempre me moveu. Falho. Marco Aurélio sorri cinicamente. Ele ganhou de novo.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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