Luciana Bugni

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Opinião

Você consegue levantar a cabeça do celular e ouvir histórias de gente?

De cabeça baixa no celular, ninguém mais escuta histórias. Mas basta um simples desvio do olhar para dar de frente com alguém disposto a contar algo que pode mudar o seu dia. Ou sua vida? Deve ser a primavera que me bota assim florescendo esperanças.

Estive pensando nisso essa semana em Tiradentes, a cidade histórica mineira com 7 mil habitantes. Estou andando pelo calçamento irregular da rua Direita, meio perdida, meio olhando o celular, quando decido perguntar para uma pessoa de verdade como chego ao meu destino. Devem ser os ares da montanha que me fizeram trocar a segurança (e solidão) do Google Maps por uma arriscada interação social com um desconhecido. A moça em questão me sorri, apontando a casa secular logo ali em frente, em estilo colonial, com janelinhas coloridas. Mas orienta que antes eu entre na porta ao lado para provar "um queijim".

Eu me surpreendo com o desvio de rota na conversa. Estou acostumada a responder o que os outros perguntam, apenas, e na verdade ninguém me pergunta mais nada. Justifico que estou atrasada para uma palestra que vai discutir as outras vozes femininas na literatura. Mentira, eu só digo palestra. Ela replica simpática que eu então passe por lá depois, uai. Tem muitos "quiejins".

Uma hora depois estou provando e aprendendo sobre maturação de queijos e harmonização com geleias - você já provou a de abacaxi com pimenta? Ela me conta sobre sua rotina, como velhas amigas. Eu faço perguntas. Ela fica magoada por eu não gostar de doce de leite (eu sei, gente, é esquisito, eu sei). Eu encho uma sacola de outros produtos.

Estive na cidade para assistir alguns eventos do Festival Artes Vertentes, que está em sua 14ª edição. O tema era "entre as margens do Atlântico" - curioso pensar no impacto do oceano em uma cidade que fica a quase 400 km do mar, mas foram exatamente essas ondas, há muitos séculos, que mudaram os rumos do território sem fronteiras que aqui tínhamos antes da colonização portuguesa. O Vertentes foi idealizado pela russa Maria Vragova e pelo brasileiro Luis Gustavo Carvalho, que assinam a direção executiva e artística de 10 dias de intensa programação.

Tiradentes: fachadas coloniais e muita arte
Tiradentes: fachadas coloniais e muita arte Imagem: Luciana Bugni/ UOL

Tiradentes, aliás, o tal dentista inconfidente, nasceu perto dali, em Ritápolis. Quem me conta é o fotografo André Frade, autor de algumas das imagens de uma das exposições que vestem a cidade de arte. O local só levou o nome do rebelde após a proclamação da República — antes o vilarejo era conhecido como São José, mas decidiram homenagear um herói nacional e abdicar da denominação colonialista. Liberdade ainda que tardia.

No celular, mil projetos e clientes me chamam sem parar. Eu levanto a cabeça para respirar e fico hipnotizada pelo sol entrando por uma das janelas largas que abrem a vista para as fachadas encantadoras. Como podem os portugueses virem aqui para destroçar um país e terem deixado uma herança concreta e terna como as portas e janelas coloridas?

Mas o que vale mais: a escrita ou a fala?

Em uma das palestras, a professora, ensaista e dramaturga Leda Maria Martins pergunta quando foi que começamos a usar a escrita para desqualificar a oralidade. A história contada tem tanto valor quanto a escrita, ela garante, talvez mais. "É uma prática da modernidade europeia que quer definir o que seria civilizado e não civilizado. Escrita é alçada como sinônimo de razão e posteriormente de civilização. Desconsideram a oralidade como meio de conhecimento", ela fala. E eu aprendo. Penso imediatamente em meu filho que, ao menor sinal de tédio, diz: "Mãe, me conta alguma coisa? Pode ser de verdade ou inventado". Na infância, a gente sabe melhor o quanto aprende ouvindo o outro.

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Jean D'amerique, um poeta haitiano que também esteve no Vertentes, ensina um provérbio do Haiti: "Não vou falar francês, não vou fazer literatura". A expressão, em um país cujo idioma oficial é o da França, quer dizer: vou direto ao meu objetivo. "A urgência que há em mim não me permite procrastinar usando essa língua", ela explica a metáfora. Jean tem livros publicados, claro. Leda também. Eles só estão nos lembrando de ouvir o outro. A urgência que há em mim quer falar, eu penso, enquanto escrevo essas linhas.

Luiza Romão e Jean D'Amerique
Luiza Romão e Jean D'Amerique Imagem: Luciana Bugni/UOL

A poeta Luiza Romão disse que o texto nasce com ritmo, respiração. "É importante abordar a palavra como uma experiência do corpo. Isso inverte a lógica eurocêntrica de que o corpo não é importante". Luisa coloca a performance como centro de seus poemas. Em cena com Jean D'amerique, em uma das atrações do festival, compõem um ritmo nos idiomas francês e português. "O poema explodirá a noite de arame farpado". Eu fico estupefata com a força dos versos (alguns deles em idioma que nem compreendo) na voz de quem os sente. Escrever, dizem as escritoras que ouvi esses dias, acontece a partir da escuta de mulheres ancestrais, contemporâneas ou imaginadas. A autora camaronesa Léonora Maino conta, por exemplo, que um de seus livros lhe foi contado em sonho, por uma mulher a quem ela não conhecia. Ela acordou e se colocou a anotar.

Luiza cita então Ricardo Piglia, em "Respiração Artificial". Ali, ele descreve as cartas como documentos para serem abertos no futuro. "A correspondência é a foma utópica de conversa porque anula o presente e faz do futuro o único lugar possível do diálogo", diz. De fato, uma carta gostosa é uma conversa no bar, ou ao telefone, ou em uma lojinha de queijos mineiros. Uma crônica sou eu te contando como foram meus últimos dias em um futuro que não sei bem quando — o momento em que você me lê. A nossa conversa se dá sem um tempo presente.

Debaixo das pedras do chão

Minha chegada em Tiradentes foi sob os batuques da congada de Mestre Prego, capitão do congado Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia. Ele diz que o canto é de alegria e lamento ao mesmo tempo. Peraí: não era melhor ser alegre que ser triste? Prego me liberta para ser os dois, ao mesmo tempo, enquanto escuto a batida seca no tambor que ecoa pelas paredes que circundam uma praça. Ao lado, uma igreja. Em frente, a estátua de bronze que homenageia o mártir enforcado. André Capilé traz reza e canto em verso para explicar a música negra do Brasil. Tudo misturado, eu aprendendo tanta coisa que não estava escrita...

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André Capilé se apresenta em frente à projeção da congada, em Tiradentes
André Capilé se apresenta em frente à projeção da congada, em Tiradentes Imagem: Luciana Bugni/ UOL

Não é bonito que haja um Festival que dê voz ao canto preto em uma cidade que foi construída sobre o sangue deles durante a escravidão? Em um documentário captado por André exposto em uma das casas do projeto, Prego diz que para contar a história do Congado seria preciso escrever mil livros. Enquanto isso, ele fala, pois tem pressa. A oralidade não cabe em qualquer formato. Ela vai se dando. Na igreja ao lado, um coral encarna "Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius de Mores, como se fosse uma oração de mandinga de amor do que vai, vai, vai (não foi). Sete dias antes, os tambores do Reinado invadiram igrejas em cidades vizinhas. O sincretismo religioso ensina um Brasil sem a necessidade de letras.

No fim da mesa que Leda e Jean dividem, ela propõe aos presentes que cantem. A alegria e o lamento. Prego lembra que foi preciso uma mulher vir da Rússia para que a arte de seu povo pudesse ser contada em Tiradentes. Bem se vê: o Atlântico sempre teve tudo a ver com a história.

Se eu pudesse aconselhar as pessoas, eu diria para ouvir o outro. O tempo todo. Levanta a cabeça, olha para a frente e escuta o que quem estiver ali tem a dizer. Ouvir um tambor. Um coral de afro-samba em uma igreja católica lapidada por escravizados. Hoje, seus descendentes recebem os aplausos.

E provar um queijim, quem sabe. Comprar uma geleia? A gente anda ensimesmado demais.

A gente pode falar mais disso no Instagram.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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