Marina Silva e a luta: você realmente se importa com o que diz se importar?

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Essa semana as imagens de Marina Silva em uma audiência em Brasília mobilizaram o país. A onda de desrespeito de seus colegas eleitos envolve machismo, misoginia, racismo e um projeto de devastação visando lucro imediato que dura décadas na Amazônia. Marina, como na última terça-feira, de dedo em riste, está lá há muitos anos porque realmente acredita na importância da preservação do local onde nasceu.
Coincidentemente, a maior floresta do mundo não é importante só para quem veio ou está lá. Mas então porque parece que, entre centenas de senadores, só a ministra se importa?
Em uma improvável conexão de injustiças entre o Norte do Brasil e o da França, o filme "Entre Dois Mundos", que estreou essa semana nos cinemas, protagonizado por Juliette Binoche, fala sobre quanto você se importa por aquilo que mobiliza sua luta. E que luta é a sua de verdade —será possível que pessoas que não se inserem na minoria que precisa de auxílio sejam de fato capazes de traduzir suas dores e necessidades?
O filme, dirigido pelo escritor e cineasta Emmanuel Carrère, foi baseado no livro da jornalista Florence Aubenas, que se inseriu na realidade das mulheres que limpam os ferry luxuosos na madrugada no litoral francês. Antes daquela cama estar bem arrumada para que você pudesse deitar, esteve ali uma mulher que arrumou 60 camas daquelas em 90 minutos. Os espasmos musculares de quem trabalha freneticamente assim por alguns centavos dificilmente doem em quem descansa seu corpo flutuando pelo mar em um passeio da França até a Inglaterra. E para entender é preciso sentir a dor do outro.

No filme, uma escritora chamada Marianne mente que precisa daquele trabalho para conhecer mais da realidade que assombra mulheres que realmente necessitam daquele pouco dinheiro para criar filhos e pagar aluguel. "O que será que ela acharia se soubesse que aqueles centavos que dividimos são muito mais caros para ela do que para mim?", diz a escritora, em meio a uma de suas diversas crises de consciência com as novas amigas.
Tudo está ali: a humilhação de procurar o emprego e garantir em entrevistas que sua paixão é limpar banheiros; a rispidez de superiores com nenhuma empatia; a resignação diante da aspereza do mundo. Essa última, coletiva. A vida é menos áspera quando atravessamos com aqueles que conhece a nossa luta. Escrever o livro fez sentido: virou filme e sensibilizou os ricos sobre as condições de trabalho da tripulação.
Enganar pessoas que talvez precisassem mais da amizade da personagem Marianne do que da visibilidade que ela oferecia, entretanto, é questionável. Do que, afinal, precisam aqueles que não somos? Sê-los por alguns meses faz de nós um deles?
Em um Brasil de tantas mazelas em dimensão continental, é difícil realmente se inserir na realidade de quem está muito distante de nós. É por isso que elegemos representantes. É por isso que ouvimos o que eles têm a dizer. É por isso que lemos o que vários jornalistas reportam sobre um mesmo fato. Se informar é entender. Entender é não ser enganado e —talvez— evitar ser prejudicado lá na frente.
Quantas vezes é preciso ir para a Amazônia para entender o que se passa por lá? Marina Silva, inserida na floresta há quase sete décadas, seguramente tem mais a dizer sobre o assunto que eu. Há claro, senadores que também nasceram em estados amazônicos no embate. Mas observar o histórico de luta de cada um deles deixa bem claro quem é o lado certo da história. Exploração de petróleo na foz do Amazonas, no Amapá, não parece uma boa ideia para quem se dedica ao meio ambiente desde antes da gente nascer. Pronto. Já dá para entender o que é importante na baixaria filmada em Brasília essa semana.
"Há quase 70 anos, quando da implantação de eixos rodoviários de acesso ao interior da Amazônia, o governo brasileiro iniciou uma das maiores e mais agressivas ocupações de fronteira do planeta. A Amazônia, de fato, passou a ter importância econômica nacional e internacional. Não pelo que ela é (estávamos cegos), mas pelo que dela seria possível tirar. A cidade devora o mundo. A Utopia Amazônica consiste em conhecer a floresta como um ser vivo, com o direito a vida é sua plenitude. Nela, seu maior investimento reside na preservação da vida, seja de humanos ou não humanos", diz Marcos Colón, no livro "Utopias Amazônicas". Ele já dirigiu dois documentários sobre a floresta "Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford's Adventure in the Amazon" (2018) e "Pisar Suavemente na Terra" (2022) e leciona povos originários em uma universidade do Arizona.
O mundo rumando para o colapso climático pede que a gente entenda a floresta por quem veio dela. "A utopia não mais como o não-lugar, mas como o lugar total, o lugar para o qual precisamos caminhar, onde os povos originários sempre estiveram", diz Colón. São eles e os que aprenderam com eles que têm as respostas.
"O desejo de descer da minha vida para outro mundo é o que temos em comum", diz a atriz Juliette Binoche sobre suas semelhanças com a personagem. Nunca serão de fato faxineiras de ferry, mas podem contar (a atriz, atuando; a personagem, escrevendo) como é estar ali e sentir aquilo. A literatura (e a arte em geral) serve aos sensíveis a oportunidade de estar no corpo do outro.
Alguns chamam pejorativamente de "armchair militance", traduzido como militante na poltrona, que fala sobre o assunto e não sabe de fato como é viver in loco o problema. Dá para reverter para o "airmchair listener" —um ouvinte, alguém que, dessa poltrona, escuta e entende o que quem foi lá tem a dizer e evita falar bobeira ou compartilhar fake news sobre qualquer assunto. O nada é melhor que reproduzir absurdos sobre o que desconhece.
O mundo é grande e mudá-lo às vezes parece difícil demais. Mas, como diz Eduardo Galeano, é para isso que servem as utopias: para nos fazer caminhar. Marina Silva é gigante porque segue andando em busca da sua. Se formos íntegros, seguiremos atrás.
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