'A Batalha da Rua Maria Antônia' é aula sobre golpe que persiste entre nós

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"Eles abriram a porta da sala de aula e gritaram bem alto 'Mataram o Herzog'", me contava minha mãe sobre um dia comum de 1975, quando cursava matemática, aos 23 anos, na região do ABC paulista. Os alunos, desesperados com o que vinha ocorrendo havia sete anos no país, tentavam chamar mais gente para uma passeata ou alguma manifestação contra os militares.
Desde a infância eu escuto falar sobre o efeito devastador da ditadura em pessoas que, como eu hoje, gostavam de ter a liberdade para dizer o que pensavam. Antes que me ensinassem frações compostas, minha mãe contava sobre o dia em que fugiu à luta, como filha do meu avô, que orientava severamente para não se envolver com a bagunça. E foi nela que pensei quando vi a jovem Lilian, personagem de Pâmela Germano em "A Batalha da Rua Maria Antônia", que está em cartaz nos cinemas.

A "Batalha" do filme é uma história real de 2 de outubro de 1968, em São Paulo. De um lado da rua que é polo universitário até hoje, fica o Mackenzie, à época protegido por tapumes e abrigando mais do que alunos endinheirados. Era ali que os membros do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, ficavam camuflados com suas armas (tinha coquetel molotov, revólveres, pedras, tijolos e até ovos podres). Havia na faculdade também quem era contra a ditadura e o clima já era hostil lá dentro.
Do outro lado da rua, a Faculdade de Filosofia da USP, que encabeçava a luta política universitária. Todo o conflito começa com um pedágio realizado pela USP na rua para conseguir dinheiro para bancar um congresso da União Nacional dos Estudantes e se transforma em alvo de pedras. Uma eleição da UNE corria em paralelo e uma urna estava presa dentro do Mackenzie e precisava ser resgatada.
Lilian, abraçada em seu livrinho de Aristóteles, quer estudar. Entra no prédio naquela manhã perturbada com o movimento estranhíssimo na rua —e a violência nem havia começado. Tem, além dos conselhos do pai para ficar fora da balbúrdia da revolução estudantil, outras coisas na cabeça: confessar que está apaixonada pela melhor amiga é uma das questões de uma garota que tenta levar uma vida quase comum em um país pegando fogo.
Como no prédio da Faculdade de Filosofia em Santo André onde minha mãe cursava matemática, os alunos invadem a sala. Muitos fecham os livros e vão atrás dos rebeldes. Lilian fica constrangida. Tenta continuar prestando atenção na professora, mas se perde. É difícil mesmo fingir que não aconteceu nada quando alguém que você ama está em perigo.
"A ditadura não está só em Brasília não, ela está do outro lado da rua, no Mackenzie. E a gente precisa lutar pelo direito de escrever poemas, escrever livros, fazer filmes", diz um professor no prédio. "Os alunos decretaram que não vai ter aula hoje", diz outra, reclamando que estão a impedindo de trabalhar. "Quando a senhora resolver se envolver com nossa luta, poderemos conversar. Aliás, tem isqueiro?", pergunta o líder estudantil debochado à mestra. O clima de tensão aumenta, incendeiam o prédio, literalmente.
A situação lembra a calamidade que são os comentários na internet atualmente. Até os xingamentos são parecidos. Só não voa ovo porque o wi-fi ainda não sustenta objetos alados, mas pouco mudou nos últimos 57 anos —do outro lado da rua vem todo tipo de podridão inbox.
Na TV, nessa semana de março, vemos a possibilidade de um ex-presidente contemporâneo (que, aliás, nega os fatos narrados acima e defende o retorno dos militares) se tornar réu por ter incitado um golpe há dois anos. Eu disse dois anos, não 60. Se tivesse sido bem-sucedido, os alunos poderiam hoje entrar gritando na faculdade de nossos filhos para anunciar a morte de algum colega jornalista. Ou a minha mesmo. Já pensou?
Eu já pensei. Desde que a amnésia coletiva dos simpatizantes da ditadura ganhou as redes sociais, a atmosfera de medo lembra a caminhada cabreira de Lilian rumo à sala de aula com seu livro de Aristóteles nas mãos. "O homem é, por natureza, um animal político" é uma das tantas frases do filósofo. Os "animais políticos" da USP foram transferidos para o campus da Cidade Universitária, no Butantã, do outro lado da cidade, naquele ano mesmo. Um exílio urbano que dificultou confrontos. O prédio só foi devolvido à USP em 1991 e, hoje, é lá que funciona o Centro Universitário Maria Antonia e o Tusp. Dá para visitar, ver uma peça, fazer um curso livre ou ver uma exposição. E lutar pelo direito de escrever tudo isso. Ainda bem.
Mas não tem luta ganha (nem golpe totalmente frustrado). Jornalistas foram e ainda são perseguidos nesse 2025 por denúncias de administração pública, em histórias estarrecedoras. O medo paira quando, descrentes, vemos apoiadores da repressão repetindo as mesmas frases de 60 anos atrás e pedindo anistia antes de serem julgados. Tudo parece nebuloso.
"O menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito na medida em que avança", também escreve Aristóteles. Entre tantas desconstruções da verdade que vimos nos últimos tempos, o filme de Vera Egito é um alento. Em 21 cenas filmadas em plano sequência —como a série "Adolescência", da Netflix, que conquistou o mundo todo—, eu consigo ver a mistura de três gerações: a de minha mãe, sentada acuada naquela sala de aula; a minha, com a vida profissional que escolhi, mas sob ataque do chorume na internet; e a dos jovens de hoje, divididos ainda entre o lado de cá e o de lá da rua. De alguma forma, aquela aula sobre Aristóteles que a professora não pôde terminar, se prolongou, na prática, por esse tempo todo.
No julgamento da denúncia contra Bolsonaro, filho e neto de Herzog assistem a tudo e esperam justiça. Que a história vença sempre. Mas a que custo?
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