Luciana Bugni

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Opinião

'Adolescência', da Netflix: somos a geração de pais que não têm saída

Quantas vezes você escutou essa semana a pergunta: "Você já viu 'Adolescência'?". A microssérie da Netflix chamou a atenção do mundo e levou pro debate público uma bola que estava quicando faz tempo: nós, realmente, sabemos o que nossos filhos estão fazendo por tantas horas no celular?

Não temos a menor ideia. Na série, essa ignorância acerca do conteúdo que eles consomem é levada às últimas consequências. A casa de uma família de classe média é arrombada pela polícia porque o caçula, Jamie, de 13 anos, está sendo acusado de assassinato. "É um engano. Ele é apenas uma criança", grita a mãe entre muitas lágrimas.

Ousada, a obra é composta de quatro episódios gravados em plano sequência. Não há cortes. É uma cena contínua de uma hora, ensaiadíssima, que te coloca dentro da cronologia da história e tira o fôlego dos personagens e público. E se a polícia invadisse a sua casa e levasse seu filhinho por supostamente cometer um crime? A pergunta imediata do pai do protagonista é a de todo mundo: "filho, foi você?" Mas e se foi?

Stephen Graham e Owen Cooper em 'Adolescência'
Stephen Graham e Owen Cooper em 'Adolescência' Imagem: Divulgação

Adolescência é um mistério. Por alguma razão cognitiva, apesar de nós, adultos, lembrarmos as agruras dessa fase da vida, não sabemos muito bem por que agíamos de forma tão cruel com nossos pais, por exemplo. Precisava desprezar tudo? Anos depois, criando adolescentes, fui testemunha do "aqui se faz, aqui se paga". Lembro do meu choque quando aquele menino fofinho que fazia perguntas filosóficas como "qual o sentido da vida?" virou os olhos para o que eu dizia à mesa do jantar pela primeira vez. Os olhos dele entraram em órbita e ele nunca mais se interessou verdadeiramente por opinião nenhuma que eu porventura tivesse.

"Acho que o abismo geracional em que pais não sabem muito bem o que está acontecendo com as crianças e adolescentes faz com que os mais novos achem que podem confiar mais em seus pares do que em adultos ou na mídia tradicional para passar valores", diz Lauren Greenfield, criadora de outra série, o documentário "Social Studies", que está na Disney+ americana.

Essa suposta falta de confiança é o prato cheio para jantar fake news e comer misoginia de sobremesa. O resultado dá para ver na série ficcional na Netflix. Se alguém disse no Tik Tok, é lei. No hedonismo do scroll, é mais gostoso confiar em quem não está te pedindo para arrumar a cama. Cérebros de uma geração inteira são, assim, moldados pelo algoritmo. Jamie, o personagem, tem só 13 anos. E já sabe exatamente o que pensa acerca de muita coisa —não necessariamente as opiniões são válidas do ponto de vista do respeito ao próximo.

Se a internet está contra nós, quem estará por nós?

Não temos controle do que estará na internet. As big techs inventoras do sistema não parecem lá muito interessadas no assunto (aqui entra o não-sorriso do Zuckerberg anunciando o fim das agências de checagem e o baile solto de fake news). Pais precisam fazer algo. Mas o quê?

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Alerta de Spoiler Splash
Alerta de Spoiler Splash Imagem: Arte UOL

Estamos todos presos na cena final de "Adolescência", com Eddie, o pai do garoto (Stephen Graham, também roteirista da série) chorando pelo que não foi capaz de fazer. E quem é? Estamos todos naquele quarto, beijando um ursinho de pelúcia e tentando caminhar sobre as trevas das ruínas que deixamos cair?

"Nunca estivemos em uma crise de saúde mental tão séria", diz Lauren. Cansaço de pais. Negação de que as crianças que criamos sejam capazes de aprovar algo que vai tão contra os valores que (tentamos? falhamos?) passamos a eles. Impossibilidade de diálogo. Contas não-públicas em redes sociais em que é possível postar o verdadeiro e questionável "eu" longe do olhar dos educadores. Incapacidade de transpor o abismo trazido pela tecnologia que também usamos. Falta de estômago para monitorar um TikTok indigesto. É tudo nossa culpa mesmo?

Enquanto isso, o chat GPT diz para meninos solitários que será ela mesmo, a máquina, o apoio que eles precisam. Quando a dor da solidão é causada por uma menina sem interesse no rapaz, são os grupos incell que vão acolher e ensinar mais ódio. "Se não permitimos armas engatilhadas com os menores de idade, precisamos fazer o mesmo com as redes sociais", diz Lauren. Seu documentário reflete, a certa altura, que é difícil entender como ainda seremos pessoas, frente a isso tudo.

Owen Cooper interpreta Jamie Miller em 'Adolescência'
Owen Cooper interpreta Jamie Miller em 'Adolescência' Imagem: Divulgação/Netflix

As reflexões sobre inseguranças nas redes no festival de inovação SXSW deixam claro que estamos preocupados demais com o jovem pegando Uber sozinho enquanto o perigo mesmo pode estar rolando ao seu lado, com uma criança com o celular no sofá, enquanto a gente se distrai com alguma coisa que faça sobreviver a mais um dia difícil. O combo de misoginia, pornografia e frustrações pessoais mal curadas e nada conversadas é uma bomba.

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"A gente protege as crianças offline e deixa muito livres online", diz o professor da Universidade de Nova Iorque Scott Galloway. Ele afirma que, entre as grandes tendências que moldam o momento atual, está "a crise dos meninos americanos". Infelizmente, não existe nacionalidade na crise —está no mundo todo e o James do interior da Inglaterra pode estar na sala de aula do seu filho.

Aqui, entra a natureza tóxica da comparação. Jamie está desesperado por aprovação a qualquer custo e quando se depara com uma garota que o coloca em xeque debochando publicamente, se desorienta. Se lançar para a vida adulta é uma aventura com grandes chances de fracasso. As relações da geração de homens jovens, reflete Galloway, são inexistentes. "Sem as proteções de um relacionamento, os jovens se comportam como se não tivessem nenhuma proteção", conclui. Ui.

Não faltou amor em casa para Jamie, e a gente tenta usar essa certeza como consolo. Só que dá ainda mais desespero. Se não foi isso, foi o que? É contar com a sorte a partir de agora? Quando uma psicóloga afirma que não voltará a clinicá-lo depois de uma série de violências, o garoto se desespera. "Você não gosta de mim? Você gosta de mim, não gosta?".

Ela não responde. E a gente, criticando as novas gerações como se negar o que está acontecendo resolvesse o problema, segue sem muitas outras respostas.

A gente pode falar mais do assunto no Instagram.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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