Cinco anos após começo da pandemia: o que você lembra daquela outra vida?

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Eu estava saindo do banho nesse começo de março há cinco anos, quando meu marido disse: "Acho que vai vir para cá". Chuva? —é geralmente no que eu pensava em março até 2020. "Não, a gripe asiática". Dei de ombros e disse que ele estava maluco.
Durante essa semana, aqui de 2025 (um março em que o futuro parece também incerto), essa memória voltou forte por dois motivos. O primeiro é a efeméride da pandemia: 1.800 e tantos dias se passaram desde que tudo virou de epifania estapafúrdia a ficção científica da vida real com requintes de filme de terror. O segundo motivo veio do Texas, atualíssimo, em uma palestra sobre saúde social, de Kasley Killiam no SXSW, maior festival de inovação do mundo.
O tema, Kasley defende, é um dos três pilares de saúde. Física (é bom não fumar, comer e dormir bem e fazer exercícios, como você sabe), mental (terapia está em dia por aí?) e social. O discurso parece um relatório da rotina nos anos 1980. Está sozinho e entediado? Telefone para um amigo. Marque café. Abrace. Nossa, que coisa antiga para se propor em um festival de inovação... mas é justamente disso que andamos precisando.
Kasley associa o comportamento socialmente saudável à longevidade. Curioso, porque era justamente viver mais o que estávamos tentando conseguir há cinco anos, quando tranquei a porta de casa em um 14 de março e nunca mais saí. Quer dizer, nunca mais é muito tempo. Mas o isolamento durou muito tempo mesmo.
Após a palestra, discuti com alguns amigos que estavam no Texas como os cinco anos de pandemia demoram para ser internalizados. A gente custa muito a entender o que houve. Tanto que só virou literatura científica e assunto agora o que ficou evidente para mim no dia seguinte ao momento em que tranquei a porta do apartamento 97. Se relacionar socialmente é obviamente importante para nos mantermos saudáveis.
Ok, todo mundo sabe disso. Mas o movimento que se vê nas redes sociais, entretanto, é oposto. Olhos viram quando o telefone toca. Gente glamouriza o fato de marcar um evento e não aparecer. Maratonar séries é sinônimo de não precisar se relacionar, fechados em quartos, colados em telas, como se uma pandemia assolasse o mundo lá fora. E assola: a da solidão.
A historiadora médica da Universidade de Exeter, Dora Vargha, afirmou no jornal The New York Times que não houve nenhum esforço generalizado para memorializar as mortes por covid-19. Ela acha compreensível. As pessoas, ela disse, não querem ser "arrastadas de volta" para lembranças daqueles anos de Covid. Foi terrível mesmo. Mas, além dos cardápios em QR Code que somos obrigados a decifrar, não ficou nada em nós?
A história ensina que é importante relembrar para não reviver. Em outra reportagem do mesmo jornal americano, uma comparação com a Gripe Espanhola de 1918 me deixa um tanto alarmada. "Em 1918, havia um respeito permanente pela ciência e pela medicina que parece faltar hoje", disse J. Alexander Navarro, historiador médico da Universidade de Michigan. Claro que existiam bolsões de resistência a medidas como uso de máscaras e evitar grandes grupos. "Mas, na maior parte, as pessoas obedeciam aos conselhos de saúde pública. E a conformidade era divorciada da política", diz a reportagem.
Ih, gente. Em 2020, nos dividimos em dois times —o que acreditava na ciência e apesar da tortura particular de cada um, escolhia se isolar pelo bem de todos; e a turma que não aguentava mais ficar em casa e usar máscara e ia se encontrar, sim. Esses dois grupos nunca mais se entenderam perfeitamente bem. Se vier uma nova pandemia —vai vir, eles dizem— como vamos nos comportar? Se a sociedade não aguenta sequer se lembrar do que houve, como vai encarar situação semelhante outra vez?
Fechados em nossas casas, maratonando diversas séries das quais não nos lembraremos o nome do protagonista, pedindo iFood pelo aplicativo para não ter que dialogar nem com a atendente da pizzaria, sobrevivemos por mais cinco anos desde aquele março. Para quê?
No mesmo SXSW, a psicoterapeuta famosa Esther Perel diz que gostaria de nomear sua palestra de maneira provocante: "Por que falamos tanto em longevidade se estamos tão infelizes?", ela provoca. Faz sentido. Há uma incongruência entre o desejo pela vida eterna se essa vida não está valendo lá grande coisa. Será que em vez de buscar a fórmula da imortalidade e juventude não seria mais fácil simplesmente abrir a porta e, mesmo com o cansaço e as rugas que carregamos, bater um papo com o vizinho?
Quando tranquei a porta de casa naquele longínquo 14 de março, tranquei dentro daquele apartamento uma parte de mim que nunca havia pensado como seria a vida se não houvesse liberdade. Falo disso hoje para que a gente nunca esqueça da sensação de alegria, pós vacina, de pisar na grama novamente. Todo mundo voltou meio quebrado, é verdade. Mas há respostas no outro que a gente não é capaz de achar em si mesmo.
De novo, cinco anos depois e para sempre: vamos tentar conversar? O legado é melhor que o QR Code para escolher sanduíche, eu garanto.
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