Erro na polêmica Fernanda Torres x Sofia Gastón: protagonista é Zoe Saldaña

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Muito se fala em como Fernanda Torres merecia o Oscar de melhor atriz por sua atuação em "Ainda Estou Aqui". Com a incansável torcida brasileira, em um ano em que não há filmes favoritos, a possibilidade parece menos remota mesmo.
O mesmo vale para o prêmio de melhor filme internacional: o longa de Walter Salles tem tudo para ser favorito. A não ser pelo francês "Emilia Perez", dirigido por Jacques Audiard, que se tornou destaque em Cannes, venceu "Ainda Estou Aqui" como melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro e concorre a impressionantes 13 estatuetas no Oscar, em março. Entre eles, Karla Sofia Gastón concorre ao prêmio e melhor atriz —primeira mulher trans a conquistar tal feito e concorrente direta de Fernanda Torres.
Há muitas polêmicas acerca do filme, mas antes, é importante abrir um parênteses para frisar um erro crucial: a protagonista deveria ser Zöe Saldaña, que vive a advogada Rita. Emilia Perez só existe por conta dela. O drama todo é o de Rita, a atuação marcante é de Zöe, o único número musical realmente impressionante é ela que encabeça em cima de uma mesa, de terno de veludo vermelho, cantando, dançando e tratando a nata da sociedade mexicana como marionetes. O duelo Fernanda e Zöe teria um sabor diferente se pudesse ser considerada atriz principal uma cuja personagem não dá nome ao filme. Fecha parênteses.

Um tapete vermelho meio sujo
A gente poderia falar das músicas: "são escritas em francês e traduzidas para o espanhol, não tem métrica!", indigna-se a cantora Giovana Cirne pelo Whatsapp. A explicação faz com que eu finalmente entenda o desencaixe que a gente sente quando mais um número musical começa. Mas tem mais.
Os triunfos todos de "Emilia Perez" em Cannes arrastaram um tapete vermelho grosso de questões problemáticas —embaixo do carpete havia uma sujeira danada. Primeiro, na maneira como a mulher trans é tratada no filme, já que a grande atuação de Karla é justamente quando ela vive um homem. O trailer brinca de uma maneira pouco responsável com a transição, escondendo o rosto de Emilia até a cena final, como se intencionalmente visasse causar uma curiosidade acerca de quem aquele homem violento e bruto se tornou.
A comunidade trans, claro, reclamou. Há uma cena musical em uma clínica de redesignação sexual que tenta ser comédia, como se fosse simples "comprar" um novo gênero em lotes de mamoplastias, rinoplastias e outros procedimentos. É de virar o estômago. Manitas, o traficante, ainda forja a própria morte e vive em uma situação mentirosa em que seu novo eu é desconhecido por todos. Não é bem assim que uma pessoa trans quer recomeçar a vida.
Outra questão é que o filme se passa no México, mas foi gravado na França. O diretor disse que não era necessário aprofundar estudos na latinidade dos cenários e usou basicamente o que escutou de vozes de sua cabeça. Atores mexicanos? Tem uma, Adriana Paz, que vive Epifania no último quarto do filme. O resto são americanas (Zöe e Selena Gomez, que inclusive confessou ter tido pouco tempo para aprender espanhol) e europeia (a própria Karla, que é espanhola). O argumento é que não havia elenco talentoso no México (dito de um jeito menos enfático, mas dito).
A terceira situação vexatória foi que a Europa esqueceu o poder stalk dos latinos. Coloque mexicanos bravos com a total lacuna de representatividade e brasileiros sedentos por vitória e alto potencial de competitividade para vasculhar o antigo Twitter de alguém para ver o que sai. Bem, o que saiu do de Karla Sofia não foi bonito e incluía racismo, islamofobia e outras pérolas que fazem o conservador de WhatsApp corar.

Ter consciência é não conseguir desver
Certa vez, a jornalista Ana Bardella me disse algo sobre o feminismo que nunca saiu da minha cabeça: o problema de adquirir a consciência de gênero é que você não consegue mais desver o que antes não via. É isso que acontece quando você percebe que ganha menos que o seu par, fazendo mais que o trabalho dele. As injustiças do machismo nunca mais se tornam invisíveis a partir da primeira vez que aquilo foi visto.
O mesmo vale pro racismo e aí o caminho é um pouco mais complicado para pessoas brancas. Como vou sentir o racismo na pele se nunca ninguém será racista comigo? Aí é preciso compreender o outro, conversar e fazer com que a dor do outro seja algo que nos toca também. É o momento em que fica impossível desver.
O mesmo vale para a xenofobia. É muito gostoso viajar pro exterior, mas a partir do primeiro olhar que você recebe no metrô de um país no Hemisfério Norte por ser latina (isso se não for seguido de um "go home"), nunca mais vai olhar os imigrantes do mesmo jeito. Vê-los deportados e acorrentados causa no mínimo um lamento no coração de quem enxerga o outro, mesmo que o próprio visto de turista esteja em dia.
Karla Sofia poderia ser racista e fazer um bom filme? Poderia. Mas ela pode ser aclamada pelo bom filme como atriz? Hm, não dá. Aclamar a atriz é aclamar o racismo —e a poeira toda que levantou daquele tapete vermelho.
Ok, se eu não tivesse consciência de gênero, consciência racial, consciência de classe e não fosse latina, "Emilia Perez" seria uma boa novela com pouco compromisso com a realidade. Um homem impiedoso que "vira" uma mulher benevolente sem que sua própria família saiba sua identidade. Uma novela mexicana parece ser um bom paralelo para o argumento, mas o próprio Audiard escorrega de novo quando afirma para a Folha de S.Paulo que não gosta do gênero, categórico. Ele, apesar de ter feito um novelão premiado, com direito à pausa dramática com mulher de costas, de salto, virada para a janela com cortina semicerrada, não sabe do que estamos falando. Estudar teria sido bacana.
Gosto de novelas, mas há anos que a consciência me arrebatou e não dá para mais gostar das coisas —aqui entra a genial Luana Piovani reclamando que não pode mais posar de biquíni— sem pensar um pouquinho se aquilo é legal para todo mundo.
Meu amigo João Andrade, um homem trans que trabalha com cinema, afirma que "Emilia Perez" quer agradar a "comunidade hétero branca cis que quer parecer boazinha e aceitar as pessoas trans". "Por que esses personagens precisam sofrer tanto no cinema? Que sadismo", ele diz. Eu, a hétero branca cis que quer parecer boazinha, prefiro escutá-lo. E você?
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PS: A estátua de coadjuvante já é de Zöe, mulher negra, de origem latina, vivendo nos EUA com seu espanhol impecável. Em tempo: ela afirmou estar decepcionada com a erupção de tuítes inapropriados da colega Karla.
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