Luciana Bugni

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Opinião

Desabafo de Casagrande sobre sobriedade é prova de que a arte salva, sim!

No WhatsApp, vem um vídeo com o alerta: "encaminhado com frequência". Na thumb, o rosto do jornalista Arnaldo Ribeiro, amigo de vários amigos meus. Não cliquei. Os comentários abaixo diziam respeito à cocaína. Estranhei. Perguntei o que havia acontecido, e meu marido disse que o vídeo sugeria uma recaída de Casagrande, que vive há anos uma luta contra a dependência química. Achei aquilo de um mau gosto infame. Caso estivéssemos, de fato, assistindo ao fracasso de um homem em sua luta, por que compartilharíamos o vídeo, mesmo que em tom de lamento e não de deboche?

Dias depois, no mesmo grupo, um vídeo de Casagrande, o próprio, discutindo o fato. Ali, ele afirma que não deve satisfação a ninguém. Está correto. Porém, ele diz, como há pessoas do bem que se preocupam com ele, gostaria de afirmar que está sóbrio há vários anos e que, naquele momento do vídeo, estava procurando um disco que ficava no chão embaixo de sua cadeira. A explicação deveria enrubescer os abutres que festejam a suposta queda do outro.

Ele também diz algo interessante sobre sua adição: a cura foi trocar substâncias lícitas e ilícitas por arte. Sim, cinema, teatro, música, shows. É isso que o mantém vivo e com vontade de prosseguir. Que simplicidade bonita. Claro que adição é uma doença e precisa de um tratamento específico e complexo. Mas consumir cultura tem contribuído para mantê-lo longe daquilo que o prejudicava.

Eu recorro ao dicionário quando tenho dúvidas. Embriagar-se tem uma significado literal: embebedar-se. E um outro que é "deixar enlevado ou deixar-se enlevar; inebriar-se". Esse último verbo, por sua vez, tem o mesmo sentido que embriagar, mas tem um sentido figurado segundo o dicionário: arrebatar-se, deliciar-se, extasiar-se. Que delícia permitir que a arte faça isso conosco, no lugar da embriaguez corriqueira. Inebriar-se.

Fiquei imaginando a beleza de um Walter Casagrande, jogador, comentarista de futebol na TV, pessoa pública, inebriado de arte. Casagrande saindo do teatro feliz porque consumiu um texto arrebatador encenado por artistas grandiosos. Casagrande saindo do cinema e comentando aquilo como se fosse a coisa mais legal que que ele poderia ter feito. E é!

O assunto de quem consome alteradores de consciência costuma ficar em torno de usar ou não a substância. Não precisa partir para drogas ilícitas, não. Pode ver no grupo de zap: não raro o papo começa com "vamos beber" e no dia seguinte se restringe a como foi a bebedeira. Imagina o quanto a gente ganha se o consumo de drogas fosse trocado pelo consumo de arte. O papo do WhatsApp seria diferente. A vida das famílias seria diferente. Tudo muda.

Vivemos tempos muito sombrios na política brasileira, em que a arte foi relegada à condição de vilã. Fazer arte, gostar de arte, consumir arte era coisa de gente de esquerda subversiva que não merece crédito ou respeito. Não existe isso. A arte salva todo mundo. Tanto que, na pandemia, quando acabou o futebol, o que passava nos canais de esporte eram os jogos do Pelé (que, não por acaso, convencionou-se chamar de futebol arte).

Quer tentar? Começo para iniciantes: ver a Shakira dançando no Grammy. Imagina só que ela fez a música depois de ser traída e humilhada e, ali, transformou a música num canto gregoriano que fala de pureza e de dinheiro ao mesmo tempo.

Um passo além: ler o livro "Intermezzo", da Sally Rooney (Companhia das Letras). Fala sobre como a orfandade bate diferente em dois irmãos. Se gostar, leia todos os outros dessa autora. Termine em "Pessoas Normais", o mais famoso deles, e emenda com a série de mesmo nome, com a incrível ator Paul Mescal. Gostou dele? Vá ver "Aftersun", que ele protagoniza, sobre as lembranças de uma garota sobre as férias que passou com o pai, gravada em VHS — inebriar-se nem sempre é sair da experiência sorrindo, às vezes é chorar de soluçar.

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Digeriu? Tem um monte de filme que a gente chama de cabeçudo para parecer descolado, mas, na verdade, é bonito pra caramba. Outro dia, passei horas pensando em "Pepe", um hipopótamo fugido da excentricidade de Pablo Escobar na Colômbia. Quer coisa mais pesada que essa? —com o perdão dos vários trocadilhos embutidos.

No fim dessa maratona, dá uma chance: entra no cinema e assiste a "Ainda Estou Aqui". Mas tem que ser antes de 2 de março, quando estiver todo mundo no Carnaval, no meio da rua, fazendo arte e vendo Oscar. "Ah, mas lá tem droga também", alguém sempre diz. Tem. Mas se usar Carnaval direitinho você se inebria de outro jeito, eu garanto.

A arte é viciante. Uma coisa leva a outra e, de repente, você só quer falar disso. Eu acho que é aí, Casagrande está certo, que a gente se cura.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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