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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uncoupled, nova série queridinha da Netflix: trabalho tira de fundo do poço

Neil Patrick Harris em Uncoupled: um pé na bunda e a volta por cima - Divulgação/Netflix
Neil Patrick Harris em Uncoupled: um pé na bunda e a volta por cima Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

04/08/2022 04h00

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Está todo mundo falando de Uncoupled, nova série original Netflix que estreou no fim de julho. Na trama, Neil Patrick Harris vive Michael, um corretor de imóveis que acaba de ser largado pelo marido Colin (Tuk Watkins). Arrasado, tentando entender o que fez para merecer o pé na bunda sem aviso prévio, ele mete os pés pelas mãos, se humilha para o ex e não consegue o que mais quer: reestabelecer o relacionamento de 17 anos.

A coisa começa mudar quando Michael toma uma atitude em relação ao trabalho. Vai à casa de uma mulher rica (Claire, de Marcia Gay Haiden) que acaba também de ser dispensada pelo marido e a convence de que ele é o melhor corretor da cidade e o único capaz de oferecer o que ela precisa: vender o apartamento. Uma atitude assertiva e um pouco inverossímil já que estamos falando de um homem combalido pelas agruras do abandono — nessas épocas, a gente não costuma acreditar ser capaz de nada.

Licença criativa da série à parte, dá para realmente imaginar que alguém nas mesmas condições possa se agarrar às situações profissionais para se manter em pé. Não tem nada mais efetivo que um trabalho para levantar o ser humano da cama após tomar um chute. Bater cartão é um santo remédio para quer está no ciclo sofá-sorvete-lágrima sem tomar banho há três dias. Se nunca aconteceu com você, pode atirar o primeiro sabonete.

Só que a tática Michael de acreditar em si mesmo tem dois efeitos. De fato o ocupa e evita que passe o tempo manufaturando bobagens na oficina do diabo que é uma cabeça vazia. Mas talvez o ocupe demais e evite que ele mantenha a cabeça vazia para ver outras possibilidades de sua vida.

Aí dá-lhe responder mensagens fora do horário comercial. Dá-lhe fazer visitas fora do escopo de seu trabalho. Dedicação total ao cliente garante que não sobre tempo para pensar em si. Evita sofrimento, claro. Mas coloca o que no lugar?

"O trabalhismo, a religião de uma geração que acredita que você é o que você faz, foi um dos principais ingredientes para chegarmos ao atual e alarmante nível de esgotamento", dizem os psicanalistas André Alves e Lucas Liedke, que produzem o bom podcast Vibes em Análise. Essa reflexão está num dos estudos deles chamado "Sentidos do Trabalho".

"Se o culto ao trabalho foi um dos band-aids que usamos para conter a falta de sentido que pulsa em nossos tempos (e na existência como um todo), parece que essa ferida está ainda mais aberta", completam. Ui, essa doeu.

É claro que o Michael da série, eu, você e tanto outros percebemos o truque: se estamos respondendo e-mails, fazendo reuniões, falando no Slack e no WhatsApp, não sobra tempo para perguntas inquietantes como "o que será que eu estou fazendo da minha vida?"

Outro dia, uma amiga disse que quando chega no fim do dia depois de trabalhar 15 horas, ela se sente exausta, dolorida, à beira de adoecer, mas feliz. "Por mais contra o capitalismo que seja o trabalhador, no fim da jornada dá aquele orgulho de dizer 'hoje trabalhei demais'", ela me disse. Eu vesti a carapuça até virar gola rolê.

A gente arruma as ferramentas que pode para driblar os silêncios que nos impõem reflexões doloridas. Mas nessa barulheira de alertas, mensagens, demandas... sobra o que de nós mesmos? Isso me lembra a célebre frase de Sócrates: "cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais". Um bom alerta para ecoar nos silêncios que porventura surgirem por aí.

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