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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Manu Gavassi não gostou, mas às vezes é preciso falar do corpo da mulher

Colunista do UOL

26/07/2022 04h00

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A cantora e atriz Manu Gavassi deu uma entrevista para o caderno Ela, do Globo. Na capa, a manchete estampava por escrito três mudanças visíveis (ou audíveis) na atriz: explante de silicone, transição capilar e mudança no timbre de voz com o qual canta.

Manu não gostou e criticou a chamada em suas redes sociais. Para ela, é desnecessário fazer um título que mencionasse apenas atributos físicos. E coloca, acertadamente, que dificilmente algum homem seria exposto da mesma maneira. Muita gente famosa concordou com ela. Realmente, muitas vezes a sexualização do corpo da mulher vem à frente de seus atributos profissionais. Se você é jovem, mulher, bonita e famosa no Brasil, parece que o físico é a única questão a ser levada em conta. Natural que Manu, famosa desde muito novinha, se irrite com o fato de o jornalismo continuar falando de seu corpo quando ela lança um trabalho mais maduro. Era, claro, muito mais importante para ela que o título da matéria falasse sobre o seu trabalho ou ideias.

Mas, peraí, o título estava falando só de seu corpo mesmo?

Sou uma década mais velha que Manu e cresci com duas máximas a respeito de ser bonita: era preciso ser peituda e ter cabelo liso. Se a genética não premiava as mulheres com um dos dois atributos, era necessário resolver com intervenções: sutiãs com enchimento, cirurgias plásticas, pranchas alisadoras, químicas variadas. Torturas em nome de um padrão estético que alguém inventou e todos seguiam.

Manu sabe bem o que é isso. Essas máximas vieram de gerações anteriores a mim e ficaram até as seguintes. Foi só sete, oito anos atrás, que alguém finalmente parou e disse que não precisávamos travar batalhas contra o caminho natural da raiz de nossos cabelos. Ufa. Veio então a complicada transição capilar: um teste de paciência em que você espera seu cabelo crescer naturalmente enrolado e vai cortando as pontas lisas por meses. E pronto: o cabelo legal agora é o cabelo que você tiver.

Não é só falar de um corpo: é identidade da mulher. Percepção da raça. Poder assumir os cabelos com cachos ou crespo é comportamento também. É liberdade.

Explante do padrão estético

A história dos seios de silicone é ainda mais complexa. Além da questão estética, alguns estudos alertam para processos infecciosos que podem acontecer enquanto a mulher tiver próteses. A "transição", nesse caso, chama explante. E é uma decisão corajosa que envolve deitar de novo em uma sala de cirurgia e entrar na faca outra vez. Tem que ter coragem para se libertar de algo que por anos é parte do seu corpo. É se reconhecer de novo. Manu foi uma dessas mulheres que teve a coragem.

Não é só falar sobre seios, é falar sobre quebra de padrões, sobre leveza, sobre liberdade de ser do jeitinho que você é.

Quando a capa do Ela coloca as duas questões ao lado da mudança no timbre de Manu — essa sim, uma informação puramente profissional quando se trata de uma cantora — não me parece estar vendendo seu corpo em um açougue, como tantas publicações de fato fazem e fizeram por tantos anos. São informações físicas que retratam quem é hoje a atriz. E é diferente do que a maior parte do Brasil conheceu no Big Brother há dois anos.

O jornalismo tem suas artimanhas para levar as pessoas a lerem o conteúdo. Estamos na terceira década do século XXI, a briga é feia: não é todo mundo que, como Manu e seu público, lê textos até o final. Mas, se o público atraído por um explante de silicone consumir todos os conceitos que a cantora explana e sua entrevista, teremos ganhado muito. Que sorte viver num mundo em que Manu Gavassi é o modelo para tantas meninas jovens. Queria eu ter tido essa sorte.

Que as próximas gerações não precisem fazer transição capilar ou explante de silicone só porque alguém disse que o corpo delas não bastava. E que todo mundo possa cantar no tom que quiser. É nesse momento em que entra "o otimismo das lutas que conquistaremos", como ela disse na entrevista. Estamos caminhando. Que bom.

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