Topo

Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que personagens egoístas de Elena Ferrante são sucesso entre mulheres?

Olivia Colman em "A Filha Perdida": optou por si mesma e é tachada de egoísta - Divulgação/Netflix
Olivia Colman em 'A Filha Perdida': optou por si mesma e é tachada de egoísta Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

06/01/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"A Filha Perdida" estreou na Netflix na primeira semana do ano e os fãs da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante já se empolgaram. A história, publicada originalmente no livro homônimo de 2006, conta a saga de uma mulher que decide passar as férias sozinha em uma pequena praia grega.

As personagens dos livros de Elena têm algo em comum: são mulheres que sofrem ou sofreram no passado e lidam com marcas de uma existência difícil. E essa característica é de todas as mulheres também, afinal, quem chegou à idade madura ou viveu a maternidade sem dores não deve ter feito algo direito.

Mas elas precisam ser tão egoístas?

Se você ainda não viu ou leu A Filha Perdida e detesta spoilers, pule os dois próximos parágrafos.

No filme, a atriz Olívia Colman é a personagem principal, Leda. Uma mulher autocentrada que, aos 48 anos, tem coragens incomuns para mulheres — ainda mais quando estão sozinhas. Viajar para outro país é uma delas. Enfrentar a pouco amigável população local, quando uma molecada resolve fazer algazarra no cinema é outra. Há um momento em que ela se recusa a mudar de cadeira de praia, quando uma família pede para ficar mais próxima de outros parentes na areia, causando um mal-estar danado.

E tem o ápice do egoísmo, quando Leda se julga no direito de pegar para si a boneca de uma criança e segue com o objeto roubado apesar de saber que a dona do brinquedo está chorando, passando mal, com febre etc. Eita.

A tetralogia de Ferrante, iniciada com o mais famoso "A Amiga Genial", descreve a amizade de duas mulheres desde a infância. Lenu, a narradora por quem teoricamente torcemos, tem dificuldade de expressar o que sente. Extremamente inteligente, ela cresce por méritos próprios, mas segue por décadas perseguindo os passos da amiga Lila. Lenu quer o casamento, a inteligência, o talento e o amante da outra — tem sempre alguém almejando a liberdade de outra mulher nos livros da autora.

Em "A Vida Mentirosa dos Adultos", Giovanna lida com as mudanças do corpo na puberdade. Ensimesmada, como é comum nessa idade, é incapaz de olhar com compaixão para seus pais. Compete com as amigas. Só fala de si. Quem aguenta?

A gente aguenta -- e aguenta coisa pior

Quando Leda sofre o cansaço de educar crianças no filme "A Filha Perdida", nós sentimos junto. Quando, deitada no chão da sala, ela tenta dormir um pouco enquanto um filha faz penteados com elásticos puxando seu cabelo, mulheres se compadecem.

Elena Ferrante tem coragem de expor a maternidade de um jeito que pega mal no almoço de família: não é uma bênção, é cansativo, é digno de arrependimento, sim. E é maravilhoso, ué.

Uma mãe desistir de educar as próprias filhas ou abandonar o filho, ainda que adulto, parece muito chocante para a sociedade. Mas quando um pai nunca mais volta, é natural. Quando o pai que ficou com as filhas quando a mãe partiu diz que não aguenta mais educá-las, o público tende a se compadecer. Quando a mãe vai embora, nos escandalizamos pensando como ela teve coragem.

Elena tem a coragem de colocar uma mulher sozinha em férias em outro país se recusando a mudar de lugar. A gente tem inveja. Elena tem coragem de mostrar que sair um pouquinho do esquema jantar-lição-de-casa-lavar-o-cabelo-das-crianças pode ser maravilhoso (e prazeroso também). Mas ela mostra que o egoísmo cobra seu preço por décadas. Será que a gente tem medo de fazer o que quer por receio de ser solitária na velhice?

A gente gosta das personagens egoístas de Ferrante porque gostaríamos de ter coragem de ser um pouquinho assim. Mas a gente sabe que a consequência é muito cara. Enquanto isso, almejamos a parte boa de tirar férias sozinha na Grécia — nem que seja por duas horas, na frente da TV. Você pode discordar de mim no Instagram.