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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Suspeita de crime em Jaguariúna: cultura do estupro nunca é "só uma música"

Rodeio de Jaguariúna: cultura do estupro é constante em eventos sertanejos - Divulgação
Rodeio de Jaguariúna: cultura do estupro é constante em eventos sertanejos Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

02/12/2021 04h00

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A notícia de que uma garota pode ter sido estuprada após frequentar o rodeio de Jaguariúna é chocante. Franciane Andrade, de 23 anos, não pode dar muitos detalhes sobre o caso, pois não se lembra de nada. Afirmou em suas redes sociais que acordou com dores, após possivelmente ter sido dopada, procurou a polícia e passou por exames que detectaram que ela foi estuprada.

O caso não é exatamente surpreendente: mulheres que já frequentaram rodeios sabem como o assédio nesses ambientes é mais violento que em outros lugares. Aquele costume antigo de puxar a mulher pelo cabelo, tal qual um primitivo, ainda é constante em eventos sertanejos assim. O comportamento é tão frequente que acaba normalizado.

Posso dizer pessoalmente: o Rodeio de Jaguaríuna foi o lugar em que mais fui assediada enquanto trabalhava na minha carreira. Eu na cobertura, há mais de 10 anos, com credencial, bloquinho e caneta, fui puxada constantemente. Às vezes, fisgada pela credencial, maneira de assédio que nunca havia me acontecido — e olha que eu trabalhava com credencial no pescoço umas quatro vezes por semana em festas e eventos noturnos. A mim, a violência rendeu uns vergões vermelhos no pescoço e muita irritação. Para muitas mulheres, o trauma é bem maior.

O homem que acha que está laçando a presa

Ser laçada — pelo braço, cabelo ou credencial — não é o tipo de aproximação que as mulheres acham mais sexy. É grosseiro e agressivo. Parece que, embalados pela violência contra os animais que acontecem em eventos desse tipo, os caras se comportam como se estivessem caçando presas. E presa não tem vontade, né?

Forçar beijo, cheirar cabelo, lamber o pescoço, encoxar sem autorização... está tudo incluso nos hábitos masculinos de quem está num açougue feminino e pode escolher seu jantar. Às vezes, a crença nisso é tão arraigada que eles se julgam no direito de dopar a mulher para que essa ofereça menos resistência. É o que pode ter acontecido com Franciane.

Violências desse tipo só acontecem em rodeios? Infelizmente não. Todo mundo que vai aos rodeios violenta a mulher? Também não.

Estupro acontece até dentro de casa, como descreve Adriana Negreiros em "A vida nunca mais será a mesma: cultura da violência e estupro no Brasil" (Companhia das Letras, R$ 49,90). No livro, ela comprova com histórias aterrorizantes de mulheres como ainda resiste o pensamento de que as mulheres também são culpadas pela agressão sexual que sofrem. O caso de Franciane é um exemplo. Os comentários na internet questionam: "mas o que ela foi fazer lá?", "essa história está mal contada...".

A cultura do estupro está tão internalizada em alguns homens que é custoso até para o leitor do sexo masculino perceber. "Puxou só o cabelo, não quer dizer que estupraria", diz alguém raivoso. Hm... mas também não quer dizer que não estupraria, né?

"Você está exagerando"

O cantor de sertanejo Rodolffo minimizou a polêmica em torno da música "Dar uma namorada", com a sua dupla Israel. Mulheres apontaram que a letra tinha um tom violento: "Cê não vai me iludir de graça. Me atiçou, vai ter que dar uma namorada. Se não tá querendo rolo, então não caça". Ele disse que elas estavam exagerando.

Israel e Rodolffo não estão no line up do Rodeio de Jaguariúna nem tem ligação alguma com a suspeita de crime que aconteceu lá.

Mas em vez de prestarem atenção às críticas de algumas semanas atrás e recuarem, aprendendo e ensinando algo a quem acha normal ser violento na abordagem, a dupla incitou fãs a assistirem o clipe mais vezes para que batessem recordes de views. Funcionou. Machismo é sucesso faz tempo. Ainda tripudiaram sobre as mulheres que se sentiram ofendidas chamando-as de haters e ironizando. Entre os argumentos da dupla e dos fãs parra defender a letra, estava o famoso: "É só uma música".

Nunca é "só um verso". São milhões de plays em uma letra que sugere ser natural obrigar a mulher a namorar se ela tiver atiçado alguém.

A opinião da mulher é tratada como só um empecilho diante do desejo masculino — seja de bombar uma música que ofende algumas pessoas, seja de satisfazer sexualmente. É uma linha bem tênue. Enquanto a internet xinga o feminismo, dá-lhe puxão no cabelo, passada de mão e lambida na balada. Às vezes rola até Boa-noite, Cinderela. E em todas as situações, rola a culpabilização da vítima que "estava pedindo" ou "atiçou".

Comportamentos não podem ser mudados da noite para o dia. Mas também não precisam ser mantidos por grandes ídolos sertanejos por tantas décadas. A mudança, nesse caso, talvez tenha que vir de cima do palco para se espalhar por todo lado. Aí homens e mulheres vão de fato poder cantar a mesma letra de música num show sertanejo. E as mulheres vão curtir a noite na boa.

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