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Luciana Bugni

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Para maratonar num dia, Halston, da Netflix, mostra como um artista sucumbe

Halston, interpretado por Ewan McGregor: cigarros e talento em iguais proporções - Reprodução: Netflix
Halston, interpretado por Ewan McGregor: cigarros e talento em iguais proporções Imagem: Reprodução: Netflix

Colunista do UOL

22/05/2021 04h00

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Imagina só: você é um artista muito talentoso. E chega um momento da sua carreira em que você precisa escolher: quer ser rico, famoso, admirado, mas preso a contratos ou quer ser livre para criar? E se sua arte for a moda — um produto ingrato que só funciona se muita gente comprar e usar?

A maioria dos estilistas que você conhece pegou o primeiro caminho dessa encruzilhada. Isso quer dizer que as pessoas usaram algo que estava por trás da marca deles, mas não necessariamente eram eles que estavam fazendo croquis com lápis de cor e testes de tecido. Outros estilistas estão no segundo grupo — mas aí é mais difícil que haja uma série na Netflix sobre a vida deles.

Halston, a série da Netflix sobre o estilista americano Roy Halston Frowick, traz à tona o homem por trás da grife (interpretado genialmente por Ewan McGregor). Contemporâneo de Calvin Klein (ele era apenas 10 anos mais velho que Calvin), Halston não é conhecido dos brasileiros. O perfume de sua grife, entretanto, um frasco clássico projetado por Elsa Perretti, custa R$ 373 e pode ser hoje importado pelo Pão de Açúcar. Na Netflix, descobrimos que ele criou a fragrância misturando cheiro de flores, tabaco e roupas íntimas de seu namorado. Não há calças jeans falsificadas da grife como há da CK, porque, bem... Halston se recusou a desenhar jeans.

Há o homem por trás da grife e a há o artista. Halston é os dois. E o que há no meio disso é infelizmente perturbação.

O estilista, um homem gay jovem nos anos 50, foi desprezado na juventude. Na infância, fabricava chapéus para sua mãe em Indiana, onde nasceu. O pai saiu de casa ao ver a inclinação artística do filho, após despejar frases homofóbicas em cima de sua mãe.

Halston - Reprodução / Netflix - Reprodução / Netflix
Na série, Halston ferve na noite da Studio 54
Imagem: Reprodução / Netflix

O rapaz foi parar em Nova Iorque e lá, entre um cigarro e outro, desenhou o chapéu que Jacqueline Onassis escolheu para a posse do marido, quando ainda assinava Kennedy no sobrenome. Não é preciso pensar muito para saber que no dia seguinte tinha fila na frente da loja. Halston cresceu tanto que, quando chapéus deixaram de ser hit nos EUA e no mundo, passou a fazer roupa.

Um gênio não anda só

Quando ser chique era usar uma roupa exclusiva, que ninguém mais tinha, ele resolveu desenhar casacos idênticos de várias cores: o clássico vestido-trenchcoat de ultrasuede, que podia sair na chuva. Resultado: toda mulher chique precisava de um, para ficar exatamente igual à outra mulher chique. O nome disso é revolução.

Claro, um gênio não anda só. Artistas como Liza Minnelli, a única dos personagens centrais da série que está viva até hoje, e Elsa Peretti, uma das designers mais importantes da Tiffany's nas últimas décadas, morta em março deste 2021, viviam orbitando em volta do estilista.

halston - Getty Images - Getty Images
Bianca Jagger, Halston e Liza Minneli: artista não anda só
Imagem: Getty Images

Mas, como diz a série de Ryan Murphy (é dele "O Povo contra O.J. Simpson", que você provavelmente maratonou em uma dia também), gênio é uma palavra perigosa. Halston sabia de seu talento, mas chegou num ponto em que só acreditava em si. Desprezava críticas de jornalistas, de chefes (ele vendeu sua marca e havia homens de negócios por trás do seu trabalho), de amigos e namorados e escorraçava os parceiros de trabalho que ousassem pensar diferente. Se perdeu de si nas festas do Studio 54, famosa boate dos 70's em Nova Iorque, nas noitadas de cocaína e sexo, nos relacionamentos nem tão saudáveis assim. E ficou só.

Ficar sozinho, quando se tem um trabalho que exige a aprovação alheia, pode fazer com que se perca. Tanto que, em uma das derradeiras brigas, ele ameaça a amiga Elsa com seus maiores medos: "você nunca terá o talento que tenho, nem o meu nome". Hoje, no site da Tiffany & Co, há 473 peças desenhadas por Elsa — entre elas, escovas para bebês e pesos de porta. Você pode comprar em reais. Em milhares de reais. Eu usaria todas as pulseiras que ela desenhou para a marca (talvez ao mesmo tempo). Seu nome e seu talento continuam por lá.

A coleção passada vai para a gaveta. E o estilista?

Trabalhar com o efêmero da moda é desafiador. Uma hora, a esposa de um milionário acha que aqueles vestidos são a coisa mais bonita do mundo e quer investir naquilo. Em outro momento, o objeto de desejo é outro: um barco, talvez.

O artista precisa se renovar para não ir para a gaveta junto com sua obra da estação passada.

Quando se considera um gênio, pode parar de evoluir, diz o texto da série, que culmina num levante pós derrocada: após perder a grife que construiu e o próprio nome, Halston se joga em um projeto que o faz se sentir desafiado. Fazer o figurino do espetáculo de balé da amiga Martha Graham. Ele sempre desprezou desenhar roupa para palco, mas após a certeza do triunfo, pede que leiam para ele os jornais. Críticas positivas são bem-vindas, então.

Fama dentro das fronteiras dos Estados Unidos

Mas então por que o brasileiro que veste Calvin Klein ou Pierre Cardin nunca ouviu falar de Halston?

"Halston é coisa de insider. Mas mesmo entre o público fashionista, é mais conhecido por quem viveu a época. Era uma grife que circulava entre a cultura pop muito centrada nos EUA. Mesmo vestindo Jackie ou Liza, ainda não era época do estilista que vira estrela para fora da fronteira de lá — como já acontecia com os parisienses, por exemplo. E tem o fator comercial também: quando ele quis popularizar e licenciar seu nome, não pode estabelecê-lo como uma marca forte. Diferentemente do que rolou com Pierre Cardin, que é uma marca conhecida até hoje mesmo por quem não faça ideia de quem seja o homem atrás dela", diz o jornalista de moda Eduardo Viveiros.

Talvez Halston não tenha nascido para estampar etiquetas.

Quando ele faz os figurinos do balé de Martha, se sente realizado. Longe de sua grife, se diz leve e feliz. Elogios nos jornais que ele tanto desprezava o alimentariam mais do que de um milhão de dólares por ano.

Dinheiro, você até ganha de novo. O problema mesmo é perder a essência.

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