Mãeana: cantora traz brasileirice e afeto necessários em tempos sombrios

Neo-psicodélica. Pós-tropicalista. Uma mistura de Nordeste, xaxado e outras brasileirices com a sofisticação daqueles bares de hotéis chiques em Nova York. Tudo isso e talvez um pouco mais, uma ginga meio carioca meio baiana, é parte do barulhinho bom que a cantora Mãeana está causando pelo circuito ainda ligeiramente alternativo mas já engatinhando para o mainstream de Salvador, Rio e São Paulo —e já com turnê marcada pelo mundo.
Os figurinos são uma história à parte de seu show, numa microcasa de espetáculos no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, bombando nesse verão. Assim como o cenário totalmente kitsch que inclui uma montagem com foto dos dois homenageados, João Gilberto e João Gomes.
É muito interessante ver como a cantora circula tranquilamente por esses dois universos, com algumas exceções que ela abre no final do espetáculo para Marília Mendonça e Rita Lee. Nesta homenagem, ela sobe num banquinho e abre asas de um manto de lamê cor-de-rosa, um momento quase sagrado.
Mãeana, que na verdade se chama Ana Claudia Lomelino, é carioca e vem de uma família onde todos cantam muito bem, embora não sejam profissionais do ramo. Está acompanhada no palco por um percussionista e, na guitarra, seu marido, Bem Gil, filho de Gilberto Gil. Chama atenção que a maior parte do repertório fale de dor de corno, de ciúmes, de casos de amor complicados —se é que tem algum simples.

Ela faz, no palco, uma coisa que está muito na moda na literatura: a autoficção. Ela diz que é muito ciumenta e que, isso, ela não recomenda. Esses momentos a aproximam ainda mais do público e ela vira gente como a gente, com todas as fraquezas e mazelas do amor cantadas, faladas, comentadas.
A ideia de juntar num show João Gilberto e João Gomes é outro gol, pois acessa os dois públicos além de mostrar para um e para outro o que eles talvez não conhecessem se não fosse ela.
A questão mais instigante é como Mãeana chegou nisso tudo, essa mistura de autoajuda com um timbre de voz carinhoso, afetivo, num jogo de cena, cenário e figurino muito particulares.
Aqui ela dá uma explicação: "Fui uma adolescente daquelas indagadoras, aos 13 anos larguei a escola num gesto de depressão profunda, virei uma vagabunda convicta e fui salva aos 17 pela escola (e grande mestra) Angel Vianna, que me reconectou comigo. Continuo vagabunda convicta (vagar e brincar sempre), mas a Angel acendeu minha consciência e aprofundou minha experiência corporal, filosófica e mental. Estudei também astrologia, lia muito sobre xamanismo e aos 22 anos, em 2007, esses meus amigos do grupo Tono gostaram da minha voz e me convidaram a cantar com eles."
Desse grupo fazia parte Bem Gil, seu marido e pai de seus dois filhos, Dom e Sereno. Seu nome artístico veio dessa combinação, de ser mãe de seus filhos, uma espécie de mãe de todos. Cheia de personalidade, ela já se separou, já voltou, já tornou públicas suas questões amorosas.
Sobre o repertório? "Amo Caetano, Chico, Gil, Milton, Gal, Nara, Bethania, Caymmi, Gonzagão, Novos Baianos, João Gilberto. Toda a turma da Bossa Nova, bandas de rock brasileiras e também as de pagode. Amo Fábio Júnior, Jorge Aragão, João Gomes, Rita Lee, Rosana. Amo muita coisa. Posso dizer que meu som preferido é o dos Tincoãs."
Sua presença no palco também é parte muito importante de toda a cena, de todo o sucesso: "Eu sempre cuidei sozinha dos meus figurinos, é uma parte que eu adoro. Tenho uma amiga que me ajudou algumas vezes, a Petra Sá. Já peguei roupas emprestadas do acervo da Amapô, uma marca que eu adoro, mas na grande maioria das vezes eu funciono com minha bagunça, misturando peças de última hora. Gosto de misturas inusitadas com tudo, com comida, com estampas, com perfumes, maquiagens, poesia e música."
Sobre esse sucesso que ela alcançou nessa pequena casa chamada Casa da Mãe, em Salvador, e que virou programa obrigatório de quem passa pela cidade, ela diz: "Esse show é tão confortável para mim, já fizemos mais de 150 apresentações, o que pro meu ritmo é bastante já que sou uma pessoa meio devagar. Canto no palco desse 2007. Não gosto de números, não consigo criar conexão com eles mas amo me conectar com pessoas."

Mas afinal, quem é, na verdade, o público dessa nova musa alternativa? "Acho que já encontrei meu publico em São Paulo, adoro cantar na Casa de Francisca. No Rio, eu lotei o Circo Voador duas vezes, o que foi muito surpreendente, ver aquele lugar sagrado cheio de pessoas para assistir meu show. Em Salvador o processo foi super aos poucos, cantando semanalmente na Casa da Mãe. Atribuo toda a realização e o sucesso desse projeto a essa constante construção, que funciona como uma residência artística."
Luiza Mussnich, poeta carioca, reconhece que Mãeana é necessária. Compartilho dessa opinião. Pensando bem, esse fenômeno é necessário e talvez nos ajude até a enfrentar esses tempos sombrios que Donald Trump está anunciando. Poesia, amorosidade, afeto, criatividade. E preste muita atenção: você ainda vai ouvir falar muito sobre essa mulher.
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