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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a Globo cortou seu elenco fixo e os riscos dessa estratégia

Colunista do UOL

19/06/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • O corte dos contratos fixos começou como uma medida financeira em meio à crise da Globo, mas trouxe benefícios inesperados para a emissora
  • Concorrentes no streaming e na TV aberta ainda não souberam capitalizar a oportunidade criada pela farta oferta de talentos no mercado
  • O fenômeno que começou no streaming é uma espécie de "uberização" das artes: ganha somente quem está produzindo
  • A HBO deve começar a produzir novelas no Brasil, mas uma nova onda de cortes ameaça o futuro do projeto

Dias atrás, Ricardo Waddington, diretor de entretenimento da Globo, reuniu o elenco da emissora para compartilhar com os talentos da casa os novos rumos da dramaturgia. Waddington falou sobre o novo contexto da Globo e por que os contratos de boa parte dos presentes na reunião passariam a ser por obra à medida que vencessem. O encontro foi primeiramente reportado pela colunista Cristina Padiglione.

Os contratos fixos não serão extintos, mas reduzidos consideravelmente. O salário fixo será mantido somente para os talentos que estiverem no ar. Os apresentadores seguem com contrato fixo se tiverem programas permanentes na grade da emissora, como Luciano Huck e Marcos Mion. No caso dos atores, será assim se seguirem emendando projetos e atuando constantemente.

A medida já era esperada, mesmo assim alguns profissionais presentes não gostaram. Eles acharam que o encontro foi uma espécie de demissão coletiva (o que não foi, já que todos os contratos serão cumpridos até seus vencimentos).

Além disso, segundo apurou a coluna, a intenção de Waddington ao fazer a reunião foi dar visibilidade aos profissionais da Globo da nova fase da emissora, que planeja engatar a quinta marcha no pós-pandemia e aumentar o volume de produções para atender à crescente demanda do Globoplay. O tema dos contratos estaria dentro de um contexto mais abrangente.

Waddington citou como exemplo o fato de a Globo realizar boa parte de sua comunicação por meio do e-mail corporativo da companhia e a maioria dos atores não ter o email da empresa. Tornar a comunicação mais clara e direta é uma meta da área.

Independentemente do que Waddington afirme, para muitos a iniciativa pode parecer uma simples redução de custos. Mas o sucesso de Pantanal e o rápido crescimento do streaming ajudam a explicar o que mudou e por que os contratos fixos estão acabando e os acordos por obra são uma tendência.

Modelo copiado da Netflix

O fim dos contratos fixos na Globo começou em meio a um duro processo de reestruturação da emissora, que buscava cortar gastos na TV para investir no digital, principalmente no Globoplay.

Em 2017 e 2018, os custos da Globo já eram maiores que suas receitas, e a emissora só não teve prejuízo por causa dos ganhos com aplicações financeiras de lucros bilionários de exercícios anteriores. Depois, vieram os prejuízos e começaram os boatos de que a emissora iria quebrar (o que nunca esteve nem perto de acontecer, a Globo conseguiu defender seu caixa, que hoje já é superior a R$ 15 bilhões).

Mas salários milionários como o de Faustão e outras estrelas da casa passaram a ser avaliados internamente em função do custo e do retorno. Na dramaturgia o problema era ainda maior se comparado a Faustão, porque muita gente ganhava salário fixo sem nem mesmo produzir. Havia casos de atores recebendo mensalmente mesmo depois de quatro anos fora do ar.

Em 2021, quando o movimento de saída de estrelas acelerou e a Globo cortou R$ 281 milhões em salários apenas no primeiro semestre, as críticas à empresa aumentaram. Mas os acontecimentos dos meses seguintes surpreenderam até os mais otimistas.

Monopólio da dramaturgia nacional

Antes da estreia do Faustão na Band, ainda havia receio dentro da emissora carioca de uma eventual fuga de anunciantes para o novo programa do apresentador. Na dramaturgia, o risco era que algum concorrente aproveitasse o know-how que ficasse disponível no mercado para criar uma área de novelas competitiva em concorrentes de TV, ou mesmo no streaming. Mas o tempo mostrou que nada disso aconteceu.

Mesmo sem estrelas fixas, a Globo não apenas ampliou a liderança da audiência na TV como acelerou o crescimento no streaming. Este ano o Globoplay aumentou mais de 15% sua base de assinantes em comparação a 2021. A Netflix perdeu 350 mil assinantes no primeiro trimestre na América Latina. A estimativa é que o Brasil represente cerca de 50% da base de usuários da Netflix na região.

Além disso, é difícil apontar uma estrela da Globo que tenha migrado para o streaming e alcançado maior projeção do que na emissora carioca. Em conversas com dois editores de sites de entretenimento, ouvi que as produções nacionais dentro de streamings como Netflix, HBO Max e Amazon Prime não decolam. Boa parte do público nem sabe que essas atrações existem. Ou se sabem, não se importam a ponto de clicar para ler notícias sobre elas.

Por outro lado, a novela Pantanal é o assunto que mais gera tráfego consistentemente para os sites de entretenimento, e isso desde seu lançamento. Mesmo a reprise das novelas da Globo se mostrou mais efetiva para reter a audiência durante a pandemia do que boa parte da programação dos concorrentes.

"A TV ainda tem muita força no Brasil, fala com todo mundo, do rico ao pobre. O fato de acontecer ao mesmo, todo mundo descobrir ao mesmo tempo o resultado do jogo ou as cenas da novela também é essencial, TV é uma experiência social compartilhada. E a Globo tem mais pessoas assistindo, então é ainda mais forte", diz um executivo de uma emissora concorrente.

O executivo lembra ainda que o crescimento do TikTok e plataformas digitais em geral é um risco, mas menor no caso da Globo. "O Globoplay é competitivo e ainda deu à Globo a chance de aumentar a produção e testar coisas novas. Ninguém consegue concorrer no país com o volume deles, nem a Netflix. O TikTok talvez seja o maior risco, mas ainda existe o comportamento de segunda tela. A pessoa vê TV mas está no celular ao mesmo tempo". Ou seja, as TVs perdem, mas não perdem tanto.

Record, SBT e Band ajudam a Globo

Parte do sucesso da Globo é explicada por erros espontâneos de seus concorrentes, particularmente na TV aberta.

A Record, após anos de investimentos em dramaturgia e uma visível evolução de suas produções, jogou um balde de água fria no mercado. A novela Todas as Garotas em Mim, idealizada por Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo (dono da emissora), caminha para ter o pior resultado de audiência da história de todas as novelas da casa.

No SBT, as constantes mudanças na grade da emissora tornam um desafio acompanhar a programação.

Na Band existe o projeto de um humorístico, mas a dramaturgia não é uma prioridade. Faustão por sua frequência de segunda a sexta poderia ser um concorrente para as novelas da Globo, mas os resultados são mistos. Se por um lado Faustão atrai anunciantes, o programa segue abaixo da expectativa de audiência mesmo contando com a presença de convidados que antes eram contratados exclusivos da Globo.

Ou seja, a Globo não tem concorrentes na TV aberta. Liberar seus atores dos contratos é um risco calculado, com pouco ou nenhum impacto na audiência.

Acabou o monopólio da Globo?

Quem descobre que não terá o contrato renovado pode não gostar. Mas o tempo parece apontar que no final todos ganham, até quem saiu. "O mercado mudou muito, se abriu, está mais competitivo, e assim temos mais liberdade e oportunidades profissionais. Fui privilegiado porque fiz parte de um momento em que eu tinha trabalho, mas muitos atores não tinham oportunidades", disse o ator Malvino Salvador ao colunista Lucas Pasin, semana passada.

"Hoje está melhor para todo mundo. Acabou o monopólio da TV Globo, ela segue sendo a potência no que faz, mas outros também estão produzindo", acrescentou Malvino. Para o ator, "não existir mais o monopólio é vantagem para todo mundo, inclusive para a Globo se aperfeiçoar ainda mais. Espero um dia ter a oportunidade de fazer outros trabalhos lá. Só porque eu saí, não significa que eu não possa voltar".

O que talvez tenha começado apenas como uma iniciativa de corte de custos e um experimento do novo modelo de trabalho se mostrou uma feliz surpresa para a Globo. Outro indicador importante é que boa parte de quem saiu quer retornar, como no caso de Malvino.

Estudos internos da Globo apontam que o ganho de seguidores de um ator quando ele está no ar em uma série do Globoplay é superior a quando está no ar em um concorrente. As massivas campanhas de divulgação da Globo, incluindo participações em atrações da casa e veículos do grupo, são essenciais neste efeito.

Pantanal é mais cara, mas nem tanto

Com talentos contratados por obra, a Globo ainda descobriu outros benefícios. Autores e diretores ganham mais liberdade para montar suas equipes ao chamar os artistas que mais se adequam ao projeto, independentemente de estarem ou não na Globo. A quantidade de "novos" talentos em Pantanal é um exemplo.

Além disso, desapareceu o problema dos atores com contratos exclusivos com a Globo que alegavam não ter agenda para a emissora. "Quem tinha contrato fixo achava que a Globo não faria nada, então priorizavam os projetos pessoais e recusavam trabalhos mesmo recebendo todo mês", diz uma empresária de talentos.

A economia com as despesas de salário também permitiu à Globo redirecionar investimentos em suas produções. Apesar da grandiosidade de Pantanal, a Globo não projeta gastos muito superiores à média.

Em abril, quando entrevistei Manuel Belmar, diretor-geral de Finanças da Globo, o executivo afirmou: "Pantanal tem uma complexidade de produção natural, tem muitas cenas externas. Tem padrão de qualidade extraordinário, mas isso é o que a gente é. Não estamos gastando muito mais em Pantanal do que gastamos em produções recentes ou gastaremos em produções futuras".

Os riscos da estratégia

Obviamente, o movimento da Globo traz riscos. O fato de não existirem concorrentes à altura neste momento não significa que eles não possam surgir. A HBO era vista como a maior ameaça. Mas novamente, o destino parece conspirar a favor da emissora carioca.

A HBO, parte do grupo WarnerMedia, foi comprada pela Discovery. A Discovery é notória por reality shows e produções de baixo custo. A empresa tem a meta de cortar US$ 3 bilhões nos próximos três anos para pagar uma dívida de US$ 55 bilhões da compra. Já cortaram quase US$ 1,5 bilhão em apenas três meses ao cancelar produções, demitir mais de 1 mil pessoas da área de publicidade nos Estados Unidos e fechando a CNN+, streaming do canal de notícias.

Uma nova leva de cortes está prevista e a HBO deve ser o principal alvo. David Zaslav, CEO da Warner Broa. Discovery, e Gunnar Wiedenfels, CFO da companhia, são notórios por bater agressivas metas de corte de custo em tempo recorde. A Discovery tem alguns dos executivos mais respeitados (e temidos) do mercado de mídia.

Segundas Intenções da HBO

No Brasil a HBO tinha um ambicioso plano de investimentos em dramaturgia, falava em produzir dez novelas por ano. Mônica Albuquerque e Silvio de Abreu estão entre as lideranças da área no Brasil, anteriormente a dupla trabalhava na Globo. Semanas atrás, todo o departamento corria o risco de ser eliminado.

Os brasileiros foram até Miami, nos Estados Unidos, defender para os novos chefes os planos de investimento em dramaturgia no Brasil. A novela "Segundas Intenções" foi aprovada porque o custo/benefício foi avaliado como viável.

"O real está barato frente ao dólar. Muito dinheiro já havia sido gasto no projeto de novelas da HBO. Novela faz sucesso no Brasil e é barata em comparação a produções americanas. Além disso, os países da América Latina gostam de novelas e esse é um mercado chave para o streaming. Novelas são produções que também podem ser exportadas", diz o executivo de uma plataforma concorrente. Mas isso pode não significar muito.

Nada impede uma rápida mudança de rumo se os números de Segundas Intenções ficarem abaixo da expectativa. A CNN+ foi fechada pela Discovery menos de um mês após seu lançamento. Centenas de pessoas que pediram demissão de empregos e trocaram de cidade para trabalhar no projeto do streaming de notícias se viram no olho da rua de um dia para o outro.

Talentos ainda são diferenciais

Mas se a área de dramaturgia da HBO der certo, com profissionais gabaritados e capitalizada para produzir grandes novelas no país, ela pode se tornar a primeira grande adversária real da Globo neste segmento. Se a HBO conseguir este feito, outras plataformas devem copiá-la. O Brasil é um importante campo de batalha no streaming mundial.

A experiência da Netflix, uma das principais inspirações para o modelo de contrato por obra da Globo, serve de alerta. Enquanto não tinha concorrentes, a plataforma atraiu talentos ao oferecer a possibilidade de criação de obras mais autorais. O público também via no serviço um diferencial, assistindo ao que queria, quando queria.

À medida que aumentou o número de serviços de streaming e eles começaram a oferecer o mesmo que a Netflix, os diferenciais passaram a ser os talentos e a força das franquias nas plataformas de streaming. A Netflix acabou tendo de aumentar drasticamente os investimentos para atrair grandes nomes. Os custos de produção dispararam, chegando a US$ 17 bilhões por ano.

Ao primeiro sinal de desaceleração do crescimento, quando a Netflix alertou que previa perder mais de 2 milhões de assinantes neste semestre, o valor de mercado da empresa despencou em pouco meses. Manter os altos investimentos e reter talentos é um desafio crescente para todas as empresas de mídia.

O segundo ato do streaming

Para muitos o streaming agora entra em seu segundo ato. Se no passado a Netflix foi recompensada por sua escala e capacidade de distribuição, nessa nova fase os investidores possivelmente recompensem o melhor conteúdo. É a capacidade de atrair assinantes que fará a diferença, e ter o conteúdo que as pessoas querem ver ainda é o meio mais eficiente de atrair e reter usuários.

Ter os grandes talentos exclusivos é caro, mas cria um diferencial competitivo. A fórmula funcionou para a Globo por 50 anos. Também funcionou nos grandes estúdios de Hollywood. Hoje, vivemos a uberização das artes e demais profissões, com o fim da estabilidade e aumento das liberdade, mas também mais incertezas. Do motorista de app aos talentos da Globo, só ganha quem está produzindo. Se a fórmula dos contratos por obra vai funcionar para a Globo e o Globoplay nesta nova fase da empresa, descobriremos no decorrer dessas novelas.

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