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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que Anitta ouviu não da própria gravadora e perde tempo ao reclamar

Anitta ouviu não da própria gravadora, mas não deveria se surpreender, o mercado prioriza lucros e quer reduzir riscos - Reprodução / Internet
Anitta ouviu não da própria gravadora, mas não deveria se surpreender, o mercado prioriza lucros e quer reduzir riscos Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

12/06/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • As gravadoras investem mais nos artistas que podem trazer os melhores resultados financeiros, Anitta não foi considerada a melhor aposta no momento
  • Gravadoras como a Warner Record operam como grandes fundos de investimento, otimizando os lucros e reduzindo os riscos
  • Na aposta da Warner, a relação risco e retorno de outros artistas era melhor que a de Anitta; e o TikTok é um indicador cada vez mas importante

Na quarta-feira, a cantora Anitta falou durante uma live em seu Instagram do funcionamento da indústria da música. "Investimento e apoio de carreira não é uma coisa que tenho muito, então tenho que lutar", afirmou a cantora. "A gravadora se liga muito no TikTok, no que viraliza, e se não tem um sucesso logo de cara eles dão tchau", acrescentou.

A cantora disse ainda que recebeu da sua gravadora, a Warner Records, autorização para gravar o videoclipe da música Gata, mas a Warner voltou atrás e cancelou o apoio após os números de streaming terem ficado abaixo da expectativa. "As gravadoras se ligam muito no TikTok, o que viraliza na internet. E se não tem um sucesso logo de cara, eles dão tchau e foda-s...", disse Anitta.

A reclamação chama atenção. Anitta é um fenômeno mundial. Lidera as paradas no streaming, incomoda o presidente Bolsonaro e foi o estopim para uma série de denúncias em torno dos shows milionários de cantores sertanejos como Gusttavo Lima, pagos por prefeituras.

Anitta não foi a única. Em maio, a cantora Halsey publicou em sua conta no TikTok imagens com legendas onde afirma: "Basicamente, eu tenho uma música que amo e que quero lançar o mais rápido possível, mas minha gravadora não deixa. Estou nessa indústria há oito anos e vendi mais de 165 milhões de discos e minha gravadora está dizendo que não posso lançar (a música) a menos que eles possam fingir um momento viral no TikTok".

"Tudo é marketing e eles estão fazendo isso com basicamente todos os artistas hoje em dia. Eu só quero lançar música, cara. E eu mereço tbh ("para ser honesta"). Estou cansada", concluiu a cantora.

Artistas como Adele, Florence Welch, Zara Larsson, FKA Twigs e Ed Sheeran também já se manifestaram sobre a pressão das gravadoras por sucessos no TikTok.

Gravadoras viciadas no TikTok

Por trás da pressão das gravadoras está uma lógica simples. Hoje, se você não faz sucesso no TikTok, as chances de ganhar dinheiro com uma música são menores. O TikTok é a rede social que mais cresce no mundo e já tem mais de 1,6 bilhão de usuários. Enquanto a Netflix teve mais de 9 trilhões de minutos assistidos em 2021, o TikTok foi visto por quase três vezes mais tempo, alcançando 22,6 trilhões de minutos.

Quando uma música toca no TikTok, a gravadora é remunerada pela plataforma de vídeos. O TikTok também leva milhares de usuários para serviços de streaming de música como o Spotify.

Anitta entende bem essa lógica. A cantora recentemente lançou House of Anitta no TikTok. A produção em parceria com o TikTok foi realizada por dois dias em uma casa em Los Angeles e reuniu influenciadores como Bella Poarch, Loren Gray, Luara Fonseca, Franciny Ehlke, Jade Picon e Lucas Rangel entre outros.

O TikTok já é a mais poderosa plataforma de divulgação de músicos. Anitta e as gravadoras sabem disso.

Gravadoras priorizam o lucro

Ao longo dos anos as gravadoras se tornaram uma espécie de banco de investimento onde grandes fortunas são multiplicadas. Para os ricos, investir nas gravadoras se tornou uma forma de diversificar os investimentos e ter uma "renda fixa" com pouco risco e boa rentabilidade.

Bob Dylan, Bruce Springsteen e Sting estão entre os artistas que nos últimos anos venderam os direitos de seus catálogos. Para as gravadoras e empresas que compram os catálogos de música, o investimento é de baixo risco, porque mesmo na crise as pessoas não param de ouvir música e os direitos de execução seguem sendo pagos.

Para os músicos, vender seus catálogos e receber o dinheiro de uma vez faz sentido, já que os artistas pagam mais impostos do que as gravadoras pelos lucros recebidos dos catálogos. Além da legislação favorecer as empresas, particularmente nos Estados Unidos, maior mercado do música no mundo, as gravadoras contam com um batalhão de contadores e consultorias para reduzir os tributos.

Até os artistas mais jovens têm chamado a atenção dos investidores. A BlackRock e a Warner Music criaram no início deste ano um fundo de US$ 750 milhões para reunir catálogos de direitos musicais de artistas femininas. A BlackRock é a maior gestora de ativos do mundo, com mais de US$ 10 trilhões (isso mesmo, trilhões, cerca de R$ 49 trilhões) sob gestão.

O fundo da BlackRock com a Warner irá focar em artistas mais jovens. A ideia é adotar o modelo dos fundos de capital de risco, que investem em negócios logo no início e com menor certeza de lucro, na expectativa de que amadureçam e, caso deem certo, gerem lucros dezenas de vezes maiores que o valor investido.

Segundo o WSJ, "o fundo já investiu US$ 300 milhões em 20 catálogos, incluindo o do compositor e produtor Tainy, mais conhecido por seu trabalho em sucessos de Bad Bunny, J Balvin, Rosalía e Shawn Mendes. O fundo também comprou o grupo The Stereotypes, que co-escreveu os sucessos de Bruno Mars "24K Magic" e "That's What I Like"; Jessie Reyez, que escreveu sucessos para Dua Lipa, Calvin Harris e Sam Smith; e Skyler Stonestreet, uma compositora que já compôs para Justin Bieber e Ariana Grande.

A Warner já tinha outro fundo deste tipo com mais US$ 1 bilhão para investir. O mesmo acontece em outras gravadoras. Ou seja, uma próxima safra de talentos está a caminho e eles já "têm dono". Isso ajuda a explicar o poder das gravadoras e dos gigantescos grupos financeiros que as apoiam.

De onde vem o poder das gravadoras?

Na indústria da música, quem tem catálogo tem poder. "As gravadoras são poderosas porque detém alguns contratos exclusivos", diz um executivo da indústria. "Mas mais importante que isso, elas detém os catálogos. Quanto mais catálogos uma gravadora acumula, mais dinheiro ela ganha e mais catálogos pode comprar e mais poder de negociação passa a ter".

"Boa parte dos contratos é 90/10, sendo 90% para a gravadora e 10% para os artistas. Alguns artistas muito renomados podem ter até 75/25, mas são exceções. Ser dono de uma grande gravadora é um ótimo negócio", diz o executivo. E esse negócio ficou ainda melhor nos últimos anos. "No começo as gravadoras imaginavam que o streaming iria tirar dinheiro delas, mas aconteceu o contrário. O custo de CD, distribuição, área comercial, tudo isso desapareceu e hoje as gravadoras precisam negociar apenas com Spotify, Deezer e mais meia dúzia de players"

Uma curiosidade é que as grandes gravadoras receberam 18% de participação no Spotify anos atrás como parte de um contrato de licenciamento de seus catálogos. Na época, o serviço de streaming era apenas uma startup. A Warner vendeu sua participação no Spotify em 2018, por US$ 504 milhões. A Universal e Sony Music reduziram a participação, mas seguem como acionistas.

O streaming é a principal fonte de receita da música, respondendo por cerca de 83% dos US$ 12,2 bilhões de receita da indústria da música nos EUA em 2021, de acordo com dados da Recording Industry Association of America, ou RIAA.

Segundo o Ecad, entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas, em 2021, no segmento digital no Brasil, foram arrecadados R$ 252 milhões, um crescimento de 36% em relação a 2020.

Spotify é pequeno perto das gravadoras

O streaming impulsionou os ganhos das gravadoras, mas videogames e até exercícios em casa estão se tornando novos motores de crescimento. A Peloton, um serviço que transmite aulas de bicicleta e ginástica, afirmou que os royalties de música são o maior item de custo variável dos bilhões de dólares que gasta todos os anos.

A Roblox, plataforma de videogame popular entre crianças e que também hospeda lançamentos de álbuns virtuais e shows ao vivo, recebeu um investimento da Warner Music no início do ano passado antes da empresa de games abrir o capital na bolsa.

Ou seja, se você precisa de música no seu negócio, provavelmente irá negociar com uma grande gravadora e até se tornar sócio de uma ou várias delas. A estimativa é que Universal, Warner, Sony e Merlin (uma gigante que reúne gravadoras independentes, sejam donas de 78% das músicas tocadas no Spotify.

O Spotify, é criticado por "pagar pouco" aos artistas, mas a plataforma de streaming tem valor de mercado de US$ 21,5 bilhões, pouco mais da metade da Universal Music Group, a maior gravadora do mundo, avaliada em US$ 38,6 bilhões.

Enquanto o Spotify ainda dá prejuízo, a Universal Music com seu catálogo de mais de 4 milhões de músicas e 250 artistas e marcas, é uma máquina de fazer dinheiro. Em 2021, a Universal faturou mais de US$ 8,5 bilhões e teve lucro operacional de US$ 1,4 bilhão.

No Brasil, a Hurst Capital, que investe em catálogos de músicos brasileiros, em seu fundo de investimento chamado Essência Sertaneja, tenta captar R$ 998 mil reais. Segundo o site da empresa, "a Músicas do Brasil, braço musical da Hurst Capital, originou os direitos aos royalties de 1.704 obras dos maiores sucessos da música sertaneja. Os compositores são Fabricio Fafa, Daniel Rangel, Ray Antonio e Robbson Ribeiro.

A Hurst afirma que, "o catálogo deles possui músicas de grande sucesso, como "Cuida Bem Dela", "Abaixa o Som", "Quem ama sempre entende", "Milu", "Chocolate", "Chora até Perder a Fala", "V de Vingança", entre outras". A promessa é, em um cenário otimista, pagar mais de 27% de juros ao ano (IPCA + 17,71%) sobre o valor investido. Em um cenário pessimista, seria o IPCA + 9,07%. Em qualquer cenário um retorno surpreendentemente acima da média, já que o IPCA acumulado nos últimos 12 meses é superior a 10%.

O paradoxo dos grandes artistas das gravadoras

"A gravadora abre portas, facilita colabs e feats. Graças à gravadora os contratos da Anitta são maiores, a exposição dela no Spotify e serviços de streaming é melhor, e tem ainda a verba de marketing que dentro de uma gravadora pode ser imensa", diz o executivo.

Mas ele destaca uma mudança. "O que a Anitta e outros artistas estão começando a entender é que as gravadoras estão cada vez mais direcionando seus investimentos por performance. A gravadora financia o trabalho e gerencia os riscos. Um clipe é caro e menos rentável em comparação a uma música", diz o executivo. Então, é mais lucrativo e menos arriscado investir para criar outro fenômeno no TikTok do que aumentar a exposição da Anitta.

Existe ainda um paradoxo dos grandes artistas nessas gravadoras. Por serem mais renomados, artistas como Anitta conseguem negociar contratos melhores, com maior participação nas vendas. Isso diminui o lucro da gravadora e consequentemente aumenta o risco. "Ao dizer não para Anitta a gravadora apenas gerencia a chance de perder ou ganhar dinheiro. Se a Anitta tem uma participação maior nas vendas, precisam ser ainda mais criteriosos para investir"

Uma desvantagem de Anitta e brasileiros

Outro fator é o regionalismo. O Brasil, a exemplo da Índia, Rússia e China, ainda tem um mercado local forte de música, mas no restante do mundo isso é cada vez mais raro, com predomínio de sucessos globais. Então, cada vez mais as grandes gravadoras buscam fenômenos mundiais para diminuir os investimentos em marketing e aumentar os lucros.

O sertanejo é um fenômeno no país, mas o mercado global é muito mais atrativo do que apenas o Brasil para as gravadoras. Um bom videoclipe é caro em qualquer país, mas se ele pode alavancar vendas em mais regiões, se torna mais atrativo comercialmente para a gravadora. Isso ajuda a explicar o esforço de Anitta para ganhar projeção internacional. Escala é poder na indústria da música.

O comentário de Anitta sobre o cancelamento de seu clipe foi para a Warner Records, a gravadora que a representa fora do Brasil desde 2020. No país a cantora é representada pela Warner Music Brasil. Já o catálogo de músicas da Anitta é administrado pela Sony Music Publishing.

E por que Anitta escolheu três empresas ao invés de apenas uma para administrar diferentes aspectos de sua carreira? Ela apostou na diversificação e acreditou que cada uma delas estaria mais capacitada a trazer os melhores resultados. De certo modo, fez o mesmo que as gravadoras e quem investe nelas.

Quando a gravadora diz não para o clipe da Anitta (e Halsey, Ed Sheeran, Adele e outros), está priorizando os artistas que acredita estarem mais capacitados a trazer o resultado esperado: o lucro. O TikTok é apenas um indicador de maiores chances de ganhos.

Anitta se justifica

Posteriormente, Anitta comentou em uma publicação da página "Vem me Buscar Hebe" no Instagram, que não fez a live para reclamar. "É só porque meus fãs estavam questionando alguns movimentos no meu trabalho e eu, como encaro eles como parte da equipe, queria que eles entendessem 'direitinho' tudo o que rola'".

A cantora acrescentou "que os TikTokers devem, sim, ser respeitados como profissionais, pois não é nada fácil ser bem-sucedido nesse segmento como os desavisados falam. Eles são os comunicadores que entenderam a nova linguagem desse novo entretenimento e dominam muito bem".

Como Anitta corretamente aponta, o TikTok é o novo entretenimento. Reclamar das gravadoras e da influência do TikTok é perder tempo. A música pode até ser um meio de vida romântico e idealista para alguns artistas, mas para os gigantes do entretenimento e seus investidores, é apenas um negócio.

Procuradas pela coluna, Anitta e a Warner não comentaram.

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