Topo

Guilherme Ravache

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A TV está morta. Longa vida à TV! E como o streaming esconde seus fracassos

Cancelamento de O Legado de Júpiter mostra dificuldade de medir audiência - Reprodução / Internet
Cancelamento de O Legado de Júpiter mostra dificuldade de medir audiência Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

29/06/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Resumo da notícia

  • Apesar das polêmicas, os números de audiência de TV gerados pela Nielsen se tornaram a referência no mercado de TV e publicidade
  • Agora, a empresa de pesquisa tenta criar um painel para comparar o consumo de TV tradicional com o streaming e os primeiros resultados surpreenderam
  • O consumo de streaming por horas assistidas é bem menor do que se imaginava em relação à TV, que ainda detém 64% do tempo nos EUA
  • Mas o streaming cresce rapidamente, e a chegada da publicidade, além de mais conteúdo premium às plataformas de streaming, deve mudar a dinâmica
  • A Netflix, que historicamente resistia em aceitar mensurações externas de audiência, mudou sua estratégia e deu boas-vindas à nova medição

A TV está morrendo, certo? O consumo do conteúdo de plataformas de streaming como Netflix e Disney+ disparou e está engolindo as TVs. Se você lê as notícias ou acompanha os crescentes investimentos das emissoras rumo ao streaming, é difícil não chegar a essa conclusão.

Mas dias atrás a Nielsen divulgou nos Estados Unidos seu novo painel que compara o consumo da TV aberta e a cabo com o streaming. O resultado surpreendeu.

Mesmo nos Estados Unidos, a casa das maiores plataformas de streaming do mundo, o streaming representa somente 26% do consumo de audiência, contra 64% da TV linear (aberta e a cabo). O Netflix? Representa apenas 6% das visualizações de TV por adultos. Outros 6% acontecem via YouTube. O Hulu é responsável por 3%, Amazon Prime Video por 2% e Disney+ por 1%. Todos os tipos de streaming somam 26% da dieta de TV americana, quase o mesmo que a TV aberta, que responde por 25%. A TV a cabo representa 39% de todo o consumo de TV. Uma fatia de 9% de "outras" visualizações, incluindo VOD (vídeo sob demanda) e DVD players, completa o bolo.

Importante lembrar que aparelhos celulares e computadores são deixados de fora da pesquisa da Nielsen, apenas TVs são avaliadas. Presumivelmente, o dispositivo que mensura os dados está conectado diretamente às televisões das cerca de 14.000 casas das quais o painel da Nielsen, chamado The Gauge, coleta os dados.

No Brasil, o consumo de TV a cabo é bem menor em comparação aos Estados Unidos. Como apontou o colunista Ricardo Feltrin, se a sangria de assinantes continuar, a TV paga 'morre' em 7 anos no país. Mas em compensação, o consumo de TV aberta ainda é bastante alto no Brasil.

John Koblin, do NYT, questionou Reed Hastings, co-CEO da Netflix, sobre o resultado do painel. Hastings disse que ficou surpreso, mas acrescentou que 'é meio óbvio que ainda haverá um prazo para que o streaming ultrapasse a TV linear. Mas o executivo ressaltou que (com o streaming) crescendo 'a 6% ao ano, não vai demorar muito".

A participação do streaming está aumentando rapidamente. Ele ficou em cerca de 20% no ano passado, segundo a Nielsen; em 2019, era cerca de 14%. Um porta-voz da Nielsen disse que a empresa avalia que a participação de streaming pode subir para cerca de 33% até o final do ano.

Hastings declarou ainda que vê com bons olhos os números da Nielsen, uma mudança radical para a plataforma que até recentemente afirmava não ver valor nos dados da empresa, já que não comercializava publicidade. Plataformas de streaming, particularmente o Netflix, não revelam dados de consumo e divulgam somente os dados de audiência de seus sucessos.

Problemas de mensuração

Como o The Hollywood Reporter aponta, a Netflix cancelou "O Legado de Júpiter", a série de super-heróis baseada na história em quadrinhos de Mark Millar, em 2 de junho, quatro semanas depois de sua estreia. Um dia depois, as classificações semanais de títulos de streaming da Nielsen - que atrasam cerca de um mês - mostraram "O Legado de Júpiter" como a série original nº 1 do serviço. Ela repetiu essa façanha e subiu para o primeiro lugar entre todos os títulos no Netflix, Hulu, Disney+ e Amazon Prime Video, na semana de 10 a 16 de maio.

O descompasso entre os números da Nielsen e da própria Netflix, que cancelou o show por baixa audiência, coloca em dúvida o quanto os números de medição de audiência estão mostrando a realidade. A Netflix poderia facilmente dizer que o show foi um sucesso e ninguém suspeitaria de nada se olhasse "O Legado de Júpiter" na liderança do painel da Nielsen. Possivelmente, a série tenha ido bem nos EUA, mas não no exterior. Mas a Netflix não divulga seus números, então dificilmente saberemos a resposta.

No Twitter, Rameez Tase, co-fundador e CEO da Antenna, uma empresa de mensuração de audiência de plataformas de streaming, mas que foca em números de assinantes, afirmou que o problema "é que a visualização, por si só, não impulsiona a economia do streaming. A Netflix ganha dinheiro com base no comportamento de compra dos consumidores, que é impulsionado apenas em parte pela audiência". Ou seja, para a Netflix, o número de horas consumidas de vídeo não é a única razão que leva os clientes a assinar e permanecer na plataforma.

A TV virou streaming

Mas então, por que o novo painel da Nielsen ainda tem importância? Um novo elemento da equação é o crescimento das plataformas de streaming suportadas por publicidade.

Os serviços de streaming baseados em assinatura ainda dominam a quantidade de tempo que as pessoas gastam no streaming de vídeo. Do tempo que as pessoas gastaram com streaming de vídeo em 2020, 62% foi gasto em serviços baseados em assinatura contra 32% em serviços suportados por anúncios, de acordo com uma pesquisa com 1.000 adultos norte-americanos conduzida pela firma de auditoria e consultoria PwC.

A razão para a diferença pode não ser apenas uma questão de as pessoas preferirem assistir a filmes e programas sem intervalos comerciais. A grande limitação das plataformas com publicidade é que por enquanto ainda há bem menos conteúdo original e blockbusters nelas.

Mas isso está mudando rapidamente. Em um ano, o Peacock da NBCUniversal foi lançado nacionalmente nos EUA em julho passado. Em janeiro, o Discovery estreou o Discovery+. E em junho, tanto a HBO Max quanto a Paramount+ da ViacomCBS terão opções de acesso com suporte de anúncios a seus respectivos serviços. Por hora esses serviços estão concentrados nos Estados Unidos, mas devem em breve cruzar a fronteira criando novas opções com conteúdo de qualidade suportado por publicidade no streaming.

No Brasil há o Globoplay e plataformas como Pluto TV e VIX Cine e TV, que afirmam ter crescimento acelerado e boa aceitação dos anunciantes. Pesquisas também apontam uma grande disposição do público no Brasil em consumir streaming com publicidade.

Também tem aumentado a pressão de analistas para que a Netflix adote a publicidade como uma alternativa de acesso ao seu conteúdo.

2 + 2 = 5

Existe ainda uma boa chance de simplesmente estarmos olhando para números que perderam o sentido para avaliar empresas de mídia. De que vale saber quanto tempo a pessoa assiste ao Netflix se a empresa vive de assinaturas? De que importa se a TV perde audiência se no final do dia a publicidade nesse meio ainda é mais eficiente para vender produtos que as alternativas no mercado? De que importa uma plataforma ser líder de usuários em uma região se perde rios de dinheiro e compromete outros negócios mais rentáveis?

A solução para o problema seria mais transparência. As empresas de streaming não abrem seus números e escolhem somente resultados convenientes para divulgar para o mercado. Não faz sentido, no digital tudo é mensurável. É como se quisessem passar a imagem que somente programas de sucesso acontecessem. Isso dificulta que produtores, artistas e fornecedores discutam suas remunerações e entendam de fato o que funciona ou não com a audiência.

Se o streaming continuar crescendo 6% ao ano, a TV tradicional perderá relevância, como aconteceu com a TV a cabo. Mas ela não irá morrer, vai se transformar. Teremos o sinal aberto por muito tempo e muito da programação deve até migrar para ser consumida no streaming, inclusive com publicidade. Mas nosso desejo de ligar a TV e assistir a qualquer coisa ou simplesmente deixar a tela ligada como ruído de fundo não deve desaparecer.

Siga a coluna no Twitter, Facebook e Instagram.