Com atuações precisas, 'Hot Milk' é como espiar a intimidade alheia

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"Hot Milk", filme de estreia da britânica Rebecca Lenkiewicz, é um daqueles filmes em que a trama deliciosamente não segue a lógica em que, linearmente, uma sequência conduz à outra como em uma fórmula matemática. Nessa trama sobre as intrincadas dinâmicas da relação entre mãe e filha, causa e consequência não são óbvias e diretas.
E essa dissonância entre ações, desejos e comportamentos nada tem a ver com o fato de Rebecca, que também adaptou o romance de Deborah Levy para as telas, não domine a arte do roteiro. Afinal, ela foi indicada ao Bafta e assina o roteiro de grandes filmes como "She Said", "Desobediência" e o genial "Ida" (Oscar de melhor filme internacional em 2015).
Em "Hot Milk", que concorreu ao Urso de Ouro no Festival de Berlim 2025, o que Rebecca quer investigar é justamente a lógica nada coerente das relações humanas, principalmente a codependência. Na trama, que se passa no litoral da Espanha (ainda que o longa tenha sido rodado na Grécia por questões de produção), Fiona Shaw ("Killing Eve", "A Árvore da Vida") e Emma Mackey (Sex Education", "Emily, Barbie") vivem Rose e Sofia, mãe e filha.
Elas vão passar uma temporada na pequena cidade de Almeria para que Rose se trate de uma doença desconhecida que a impede de andar. Confinada em uma cadeira de rodas desde que Sofia tinha quatro anos, ela procura a ajuda do doutor Gómez (Vincent Perez), que tem métodos não muito ortodoxos, mas eficazes.
A questão que se impõe, no entanto, é que a razão que impede Rose de andar não é uma doença diagnosticada. Não se sabe se é algo neurológico ou, o que é mais provável, de origem psicológica, consequência de algum trauma sofrido na infância ou até mesmo na fase adulta. A relação dela com Sofia é tão umbilical quanto tóxica. A filha, uma antropologista no auge de sua juventude e em crise porque precisa escrever uma tese na qual não consegue se concentrar, é cuidadora da mãe desde sempre e claramente está sufocada com os jogos mentais, verborragia e violência verbal que sofre cotidianamente.

O sol que toma conta da tela e dos dias quando saem para passear ou ir ao médico contrasta com as noites na casa em que se hospedam. Há metáforas muito claras, mas eficazes, sobre o labirinto de emoções em que Sofia se encontra.
Quando ela sai sozinha um dia para ir à praia, conhece por acaso a alemã Ingrid (Vicky Krieps, de "Trama Fantasma", "Corsage", "A Ilha de Bergman"). Sedutora na mesma medida que irritante, com seus joguinhos de sedução, a nova amiga de Sofia surge como um contraponto que traz energia, tanto sexual quanto vital, à sua vida. Ingrid é o gatilho que Sofia precisava para começar a conseguir se emancipar, ou pelo menos questionar, o narcisismo da mãe.
É justamente no quanto as dinâmicas de família, principalmente entre filhos e mães narcisistas, pedem amor e dedicação incondicionais, na mesma medida em que repelem quem as ama, que reside o real interesse de Rebecca.
Não por acaso, em conversa com Splash, ela comentou que há elementos que trouxe de sua própria experiência. "Há algo de autobiográfico na forma como construo e filmo essa história, ainda que ela não seja, claro, minha história. Mas vivi situações de conflito e codependência em família e a relação de Rose e Sophia ressoam muito em mim", declarou a diretora.
Sobre Emma, Rebecca comenta que foi uma grande sorte ter a atriz no elenco. O projeto, que foi filmado em 2023, mas começou a ser desenvolvido vários anos antes e que enfrentou a paralisação da pandemia de covid-19, ganhou neste tempo a atriz, que é uma força da natureza em produções como "Sex Education".
Para Emma, trabalhar com Rebecca foi uma dança e uma montanha-russa de emoções. "Sofia é introspectiva, mas há um universo dentro dela. Ela tem movimentos sutis, tem um olhar muito observador, que carrega tanta história, vive uma guerra interna em um momento muito crucial da vida", comentou Emma a Splash.

Rose, que ganha a interpretação da sempre surpreendente Fiona Shaw (confira sua performance em "Bad Sisters", na AppleTV+. É genial), é perversa e frágil, carente e manipuladora, na mesma medida, tornando tudo mais difícil para Sofia.
Rebecca sabe que tanto escrever quanto filmar dinâmicas de família pode ou cair no melodrama fácil ou no cinismo. Mesmo em sua primeira experiência na direção, que certamente vai amadurecer com próximos projetos, ela realiza um filme que nos desloca no tempo e no espaço ao contrastar as personagens com a paisagem solar, mas árida da Espanha (ou da Grécia, enfim), com a dureza e a neurose que dominam suas vidas.
É um verão também frio, é uma dança descompassada, é um eterno grito que ameaça sair, mas se contém na beira do abismo em prol do amor, do teatro social, da lógica que sempre se impôs. Calcada em atuações precisas, mas que soam quase como se filmadas no improviso, com cara de quem espia a intimidade de alguém feito um documentário de observação, a direção de Rebecca nos entrega um filme de atmosfera, quente e sufocante, mas também sedutora e repleta de desejo.
Se Sofia vai conseguir se livrar da culpa, sem deixar o amor pela mãe se perder ou se vai continuar amando e cuidando da mãe, sem seguir refém de seu narcisismo, é que "Hot Milk" tem a nos mostrar. Atualmente em cartaz, chega também em breve à plataforma MUBI.
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