'Emilia Pérez': O desejo de ser o oposto do que é me agradou, diz diretor
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"Realmente, o que me surpreendeu e marcou no livro era essa ideia de que um narcotraficante, ou seja, uma espécie de representante exemplar do culto da virilidade, do machismo, do falo, do patriarcado, de tudo o que vocês quiserem, possa ter o desejo de ser exatamente, de se tornar exatamente o oposto. Era esse paradoxo que me agradava." Assim, Jacques Audiard, diretor de "Emilia Pérez", explicou em entrevista para Splash qual foi o ímpeto primordial para transformar um capítulo do livro "Écoute" ("Escute", de 2018), do autor francês Boris Razon, em um filme.
Mal sabia ele que a ideia daria em um dos filmes mais premiados, criticados e debatidos dos últimos tempos. Audiard é um cineasta acostumado a se aventurar por universos que não domina e, a partir do atrito entre o que desconhece e o que descobre, extrair boa parte da força de seus filmes. Quase um ano depois da première no Festival de Cannes 2024, dezenas de prêmios, indicações e uma polêmica intergaláctica, conclui-se que, de fato, o cineasta não fazia ideia do vespeiro em que mexia ao amplificar a história de Emília Pérez e transformá-la em um filme esdrúxulo, diferente de tudo, que tem o mérito de arriscar e não temer cair no ridículo, mas que, ao mesmo tempo, poderia estar mais atento ao zeitgeist, ao atual estado do mundo e discussões socioculturais e comportamentais que não se pode mais deixar em segundo plano.
Do drama que se vê na tela ao drama fora dela, tudo em "Emília Pérez" é exacerbado como em uma ópera, um melodrama, um musical. A propósito, para tentar entender o fenômeno em que o longa se tornou, é primordial entender o que o filme não é. E é Audiard, mais uma vez, quem tenta explicar: "Não posso dizer que é uma comédia musical. A gente não tem muito vocabulário em francês para isso. Os americanos diriam que é um musical. Isso não me satisfaz também. A palavra mais correta é 'melodrama', ou seja, um drama com música."
Em tempo, desde Cannes, onde levou dois prêmios (algo raro de acontecer), Audiard comenta que sua ideia inicial era transformar a história de Emília Perez em uma ópera. A ideia foi crescendo, a ideia de transformá-la em um filme ganhou corpo e o projeto cresceu. Para levantar o orçamento de um projeto caro, obviamente nomes estelares, como Selena Gomez e Zoe Saldaña, não só ajudam como são essenciais. O nome de Karla Sofía Gascón para viver a personagem-título chegou também, assim como chegou Adriana Paz, a única mexicana entre as atrizes de "Emilia Pérez". E, assim, o quarteto que leva o filme se formou e levou o inédito prêmio coletivo de melhor atriz também em Cannes. O longa levou o Prêmio do Júri, espécie de terceiro lugar.

Na trama, Rita (Saldana), uma advogada brilhante e cansada de nunca ter o reconhecimento que merece nos casos difíceis que ajuda seu chefe a defender envolvendo ricos criminosos, recebe uma proposta suspeita, mas sedutora: ajudar o narcotraficante mais temido do México a realizar um sonho de infância, passar por um processo de redesignação de gênero e auxiliá-lo a também mudar de nome e de vida. Em troca, vai receber milhões em uma conta nas Ilhas Cayman e, finalmente, ter a vida que sonhou. Para tornar tudo mais intenso, é um drama musical que não deve nada às mais barrocas novelas mexicanas.
Esse caldeirão de gêneros está longe de ser uma obra-prima e poderia dar muito errado, mas, incrivelmente, funciona. Obviamente, há várias arestas, como a questão de ritmo, a estrutura de atos da ópera e a falta de profundidade das personagens, para falar das que saltam mais aos olhos. Sem contar a construção de Emilia e o final (sem spoilers) que transita entre o olhar estrangeiro e a alegoria do que se acha que é a cultura da América Latina. Mas, ainda que haja quem não embarque de forma alguma na viagem proposta pelo diretor francês, esse andar na corda bamba entre o ridículo, o melodrama, a ópera e o musical, com um pé no thriller de ação que faz de "Emília Pérez" um exemplar único.
Mas quando começou a onda de críticas às arestas que o filme tem? Não há uma data precisa, mas, claramente, cresceu na medida em que o filme foi ganhando projeção e prêmios. As indicações para os principais prêmios da temporada, como Globo de Ouro, Critics Choice, Bafta, e, finalmente, o Oscar só fizeram a projeção aumentar e as críticas também.
A campanha de divulgação do longa, que foi adquirido pela Netflix em Cannes, também amplificou a atenção dada ao filme e o caldo se tornou cada vez mais. Tudo ferveu mais ainda com as recentes declarações de Karla Sofía Gáscon e seu cancelamento nas redes sociais e até na campanha do Oscar, em que foi praticamente apagada das peças promocionais do longa. Piorou com a declaração desta semana do diretor, que afirmou que não tem falado com Karla que, para ele, tem tido um comportamento autodestrutivo.

As críticas questionam porque ele não foi filmado totalmente no México, porque não há protagonistas mexicanas nos papéis que são de Selena, Karla e Zoe, de porque a personagem de Emilia ser tão maniqueísta, da visão estereotipada da realidade mexicana, da falta de diálogo com grupos que lutam pela justiça e buscam os milhares de desaparecidos na guerra do narcotráfico no país. Todas as perguntas são legítimas, merecem respostas e precisam ser debatidas.
Com um pouco mais de atenção ao real e menos descolamento do México contemporâneo, "Emilia Pérez" poderia se tornar o que uma jornalista mexicana apontou na coletiva de imprensa em Cannes, uma voz para falar da realidade de um país que nem sempre ganha a atenção que merece em um grande evento de cinema como o festival.
Mas a vontade de Audiard de realizar um filme operístico, de se aproximar ao universo teatral da ópera, e ainda assim se distanciar do gênero, deixou a obra em um meio do caminho que confunde e desagrada a muitos.

Como em outros de seus filmes que foram também amplamente debatidos —vale citar "Um Profeta" e "Dheepan - O Refúgio"—, Audiard se arrisca ao fazer uma geleia geral, mergulhar em uma realidade sociocultural que não domina. Esse é um processo já sedimentado do diretor. Sua descoberta ocorre tanto no processo de escrita quanto no de filmagem. Só que, em "Um Profeta", ele se embrenha pelas prisões da Córsega para contar a história de origem do árabe Malik El Djebena (Tahar Rahim), que, de jovem semianalfabeto e sozinho, se torna um dos líderes de uma violenta prisão na Córsega.
Em "Dheepan", que lhe rendeu uma muito discutida Palma de Ouro em Cannes 2015, ele faz um thriller e também uma história de uma (quase) família do Sri Lanka que busca refúgio em Paris, fugindo da guerra em seu país. Mas ainda assim estava em seu território francês. Ao deslocar o México para um estúdio na França, perdeu o grão do real que "Emilia Pérez" poderia e deveria ter.
Ao escrever, em parceria com Thomas Bidegain, parceiro de longa data, o roteiro operístico e melodramático de "Emilia Pérez", uma personagem tão arquetípica como as grandes heroínas operísticas, Audiard criou uma personagem sem sutilezas que a comunidade trans questiona com razão.

É pena que sua criatividade e ousadia tenham que tropeçar em questões que, se mais trabalhadas previamente, poderiam ter mudado a dimensão do filme. Mas será que o diretor queria isso? Questionado por Splash sobre o que diria para quem não aprova e não entende o porquê de ele não ter filmado todo o filme no México, respondeu: "Eu fui várias vezes ao México enquanto preparávamos o filme, fiz muitos testes de elenco, fiz muita pesquisa de locação, fiz muita busca por referências, documentação? E, depois de um tempo, percebi uma coisa: que as imagens que eu tinha na cabeça para contar essa história não se encaixavam ou não cabiam mais na realidade mexicana, tinham a tendência de me esmagar, me prender ao chão."
E foi aí que entendeu que, "esse esforço" que estava fazendo para sair do sistema operacional da ópera "seria uma energia perdida." "Eu precisava voltar para o estúdio, precisava filmar tudo em estúdio. Senão, o real, iria cortar minhas asas", declarou o diretor, que também apontou em diversas entrevistas que o apoio financeiro que teria ao filmar na França seria muito maior que se filmasse no México, o que foi também decisivo para a viabilidade do projeto.
É isso. Ao se manter fiel à ideia original de realizar uma ópera no cinema, Audiard fez um filme, novamente, esdrúxulo, híbrido, que traz uma heroína tão trágica quanto as grandes heroínas das maiores óperas veristas (gênero que comento para Splash que inspira fortemente o filme) como Tosca, Madame Butterfly, Mimi de "La Bohéme", entre outras.

O detalhe é que no verismo, que tem grandes nomes como Giacomo Puccini, Pietro Mascagni e Georges Bizet, há uma conexão forte com a realidade (daí o verismo, de vero, real) personagens "comuns", distantes de grandes figuras míticas ou da realeza, e suas questões cotidianas e emocionais, como a pobre Mimi de "La Bohème", a cigana Carmen, a jovem serva Cio-Cio_San de "Butterfly". Todas elas são personagens trágicas. O destino delas é trágico como o de Emilia e o tom predominante é esse.
Em 2025, uma heroína transsexual paradoxal e trágica como Emilia Pérez não terá, obviamente, a mesma recepção que a inesquecível Butterfly. Impossível a realidade contemporânea não entrar pelas frestas do estúdio e da tela de uma produção francesa que tem o México quase como pano de fundo para esse drama operístico.
Por fim, Audiard discorda que Emilia Pérez seja trágica, "pois as personagens mudam". "É um filme, quer dizer, é um filme quem mistura muitos gêneros e que foi algo que me veio durante o processo de escrita do roteiro como uma espécie de necessidade. E isso eu posso explicar. É como o filme? O filme transita por vários gêneros, o gênero 'narcos', a telenovela, o... também a 'soap opera'... Isso ocorre na mesma medida em que personagens mudam. E Emília muda. E, a partir dessa transformação, Emília traz todos os outros personagens femininos. Todos os personagens mudam no filme. Rita muda. Epifania muda. Jessi muda. E quando você diz: 'Tudo é trágico', eu teria um pouco de reservas sobre isso, eu seria mais otimista, porque os personagens mudam e eles mudam de uma forma bastante virtuosa."
A mudança ocorre, de fato, mas não de forma solar em "Emilia Pérez" e é natural que haja todas as críticas a serem feitas. Compre-se ou não a versão do diretor, para além das polêmicas extracampo, o fato é que se trata de um filme único, cuja carreira e sobre quem o debate não se encerra nem agora e certamente muito menos na noite do Oscar.
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