Flavia Guerra

Flavia Guerra

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

'Emilia Perez': de filme esdrúxulo a forte concorrente ao Oscar 

A carreira de "Emilia Perez" no circuito de festivais e premiações da temporada 2024/2025 é tão peculiar quanto o próprio filme. Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o musical (falado em espanhol, mas representa a França na corrida ao Oscar) tem uma trama, no mínimo, esdrúxula. Mas superou o preconceito do público e da crítica que cobria o Festival de Cannes, em maio, onde o filme fez sua estreia mundial.

De produção que pedia cautela, saiu do evento com dois prêmios, algo raro. Além do prêmio do júri (uma espécie de medalha de bronze), levou o de melhor atriz, dividido entre Selena Gomez, Adriana Paz, Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón, que se tornou a primeira atriz transexual a receber o reconhecimento em Cannes.

Desde então, a coprodução francesa foi adquirida pela Netflix, recebeu prêmios em todo o mundo e foi o filme mais indicado ao Globo de Ouro 2025, com 10 nomeações, número recorde, superando todos os demais indicados desta edição e também todos os outros filmes de musical ou comédia na história da premiação.

Karla Sofía Gascón recebe o prêmio de 'Melhor Atriz' no Festival de Cannes por 'Emilia Perez'
Karla Sofía Gascón recebe o prêmio de 'Melhor Atriz' no Festival de Cannes por 'Emilia Perez' Imagem: Victor Boyko/Getty Images

No prêmio dado pelos jornalistas e críticos internacionais, "Emilia Perez" foi indicado a melhor filme comédia ou musical, filme em língua não inglesa, atriz (Karla Sofia), atriz coadjuvante (Selena e Saldana), diretor, roteiro (Audiard), trilha sonora (Clément Ducol e Camille) e canção original (Ducol, Camille e Audiard por "El Mal" e " Mi Camino").

"Emilia Perez" também foi indicado em dez categorias do Critics Choice, prêmio concedido pela crítica dos EUA e Canadá (além de uma minoria de crítico de outros países, incluindo o Brasil), e em quatro categorias do European Awards.

Na lista de pré-indicados ao Oscar, além de integrar o time de melhor filme internacional, está também nas categorias de trilha sonora, som, canção (para "El Mal" e para "Mi Camino"), maquiagem e penteado. É quase impossível que o longa não esteja em pelo menos seis categorias no Oscar 2025 e que não seja, ao lado de "Ainda Estou Aqui" e "A Semente do Fruto Sagrado" (que representa a Alemanha, mas é dirigido pelo iraniano Mohammad Rasoulof), um dos favoritos a melhor filme internacional.

Mas o que torna "Emilia Perez" este acontecimento que ameaça o tão sonhado Oscar de "Ainda Estou Aqui"? Voltamos à trama esdrúxula: Rita (Saldana), uma advogada brilhante e cansada de nunca ter o reconhecimento que merece nos casos difíceis que ajuda seu chefe a defender ricos criminosos, recebe uma proposta suspeita, mas sedutora: ajudar o narcotraficante mais temido do México a realizar um sonho de infância, passar por um processo de redesignação de gênero e auxiliá-lo a também mudar de nome e de vida. Em troca, vai receber milhões em uma conta nas Ilhas Cayman e, finalmente, ter a vida que sonhou. Para tornar tudo mais intenso, é um musical que não deve nada às mais barrocas novelas mexicanas.

Continua após a publicidade

Esse caldeirão de gêneros poderia dar muito errado, mas, incrivelmente, "Emilia Perez" funciona. Ainda que haja quem não embarque de forma alguma na viagem proposta pelo diretor de filmes premiados como "O Profeta", que chacoalhou o Festival de Cannes em 2009 e levou o Grande Prêmio do Júri, além de "Deephan", Palma de Ouro em 2015.

É esse andar na corda bamba entre o ridículo, o melodrama e o musical, com um pé no filme de drama social e até ação que faz de "Emília Perez" um exemplar único. Não se parece com nada e também tem a ver com tudo.

Karla Sofía Gascón é a protagonista de 'Emilia Perez'
Karla Sofía Gascón é a protagonista de 'Emilia Perez' Imagem: Instagram/karsiagascon

Para a campanha ao Oscar e demais prêmios, o elenco também ajuda. Além de Saldana no papel de Rita, a atriz trans espanhola Karla Sofía Gascón vive Emilia, e Selena Gomez é a mulher de Emilia antes da mudança, quando ainda é Manitas, o violento e poderoso chefe do narcotráfico mexicano.

Gascón não é conhecida no Brasil, mas antes de transicionar, em 2018, atuou em diversas novelas mexicanas, filmes e séries na Espanha ainda como Carlos Gascón. Enfrentou a opinião pública, mas teve o apoio de sua mulher, a atriz Marisa Gutiérrez, com quem tem uma filha adolescente, Victoria Helena, e escreveu um livro sobre o processo.

Para convencer Audiard que merecia tanto o papel de Emilia quanto o de Manitas, enviou fotos, vídeos e mensagens ao diretor por meses até que ele cedeu. Era o início de uma nova fase na vida da atriz, que dedicou o prêmio em Cannes a todas as pessoas trans "que sofrem todos os dias."

Continua após a publicidade

Hollywood ama histórias como a de Gascón. A arte imitando a vida de certa forma e provando que "Emilia Perez" não é tão absurdo assim. Obviamente que Jacques Audiard extrapola o tom para contar uma história operística e trágica, repleta de tensão, paixão, culpa, redenção e violência.

Quando Emilia começa a tomar consciência do mal que causou quando era Manitas, começa a entrar em contato com a história de tantas mães, mulheres, irmãs, amigas de desaparecidos da guerra dos narcos. Ela entra para o movimento social que busca o paradeiro dos desaparecidos e mais uma vez sua vida sofre um revés.

Musical, melodrama e até thriller de ação, "Emilia Pérez" não tem medo de arriscar e traz Selena Gomez no papel da mulher do ex-traficante que se torna Emilia
Musical, melodrama e até thriller de ação, "Emilia Pérez" não tem medo de arriscar e traz Selena Gomez no papel da mulher do ex-traficante que se torna Emilia Imagem: Divulgação / PAGE 114/WHY NOT PRODUCTIONS/PATHÉ FILMS/FRANCE 2 CINÉMA

Bem dirigido, meticuloso na construção de cada cenário e número, o longa também é kitsch e beira o brega em alguns momentos. Mas, por outro lado, convida o público a embarcar em um musical que foge aos padrões e a mergulhar na contradição entre a realidade latino-americana, nos dramas de uma mulher trans que quer construir uma nova vida, mas que está no fio da navalha. Afinal, não se apaga uma trajetória de violência e brutalidade facilmente. É sobre o caráter trágico da vida, num tom operístico, que opera "Emilia Perez".

Baseado em um capítulo do livro do autor francês Boris Razon, "Écoute" ("Escute", de 2018), "Emília Perez" se arrisca ao fazer essa geleia geral, navegando em uma realidade sociocultural que Audiard não domina, mas se mantém fiel a sua própria tradição de navegar por temas e gêneros diferentes e em universos que também descobre no processo de escrita. A propósito, o filme, que o cineasta disse que originalmente queria ter transformado em uma ópera, foi inscrito na categoria de roteiro adaptado do Oscar 2025.

Audiard coescreveu o roteiro de "Emilia Perez" com Thomas Bidegain, parceiro de longa data. A trilha ficou a cargo do compositor e arranjador francês Clément Ducol e da cantora francesa Camille, que escreveu as canções do filme. Como musical, o longa é irregular, oscilando entre números que fluem muito bem, em tons de comédia e drama leve, ou que se levam a sério demais, com mão pesada.

Continua após a publicidade
Em "Emilia Pérez", Zoe Saldana vive Rita, uma advogada que ajuda um narcotraficante a realizar a redesignação de gênero
Em "Emilia Pérez", Zoe Saldana vive Rita, uma advogada que ajuda um narcotraficante a realizar a redesignação de gênero Imagem: Divulgação

"Emilia Perez" curiosamente se revela um dos destaques de um ano com grandes produções. Zoe Saldana e Selena Gomez estão bem em cena e também fluem bem pelo musical, gênero nada fácil de se performar, mas é Karla Sofía Gascón quem rouba a cena e vai brilhar também no Oscar, pois é contundente e (melo)dramática na medida que a história pede.

Obviamente que a campanha milionária que a Netflix vem realizando para promover "Emília Perez" ajuda muito a levantar pautas e discussões sobre o filme, que estreia nos cinemas brasileiros em 5 de fevereiro, com distribuição da Paris Filmes.

Enquanto isso, aguardamos também as indicações e a premiação do Bafta. Considerado o "Oscar britânico", o Bafta divulga sua pré-lista em 3 de janeiro, seus indicados em 15 de janeiro e entrega os prêmios em 16 de fevereiro. Em geral, quem leva os Baftas também leva o Oscar. Então, é esperar para saber.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.