Fernanda Torres: 'Ainda Estou Aqui' deixa 'grito seco preso na garganta'
"Tinha duas cenas em que eu chorava copiosamente que ele [Walter Salles] cortou do filme. É justamente através da contenção e da dignidade dessa mulher e do amor dela pela família e da maneira como ela vai lidando com a tragédia que a gente vai quebrando", comenta Fernanda Torres para Splash.
Para a atriz, "Ainda Estou Aqui" é, em sua ética e estética, fiel à sua protagonista, Eunice Paiva, que superou com brio, luta e um sorriso no rosto, tanto dela quando dos cinco filhos, o desaparecimento do marido, levado em janeiro de 1971 por oficiais do governo militar, para depor, e nunca mais voltou.
É justamente o fato de não ser estridente, mas um grito seco, preso na garganta, que inunda o peito do espectador, que faz com que "Ainda Estou Aqui" seja a força que é. Com sua narrativa clássica, mas precisa, sua economia de cores, gestos, trilha sonora, com suas entrelinhas cheias de vazios que se completam no olhar do espectador e nas trocas de olhares dos personagens, principalmente o de Eunice Paiva (Fernanda Torres), o longa dirigido por Walter Salles chega em ondas, silencioso, mas potente, e tem tomado corações e mentes de públicos mais diversos possíveis.
Em seu fim de semana de estreia, ele tomou o público brasileiro e liderou as bilheterias, para a alegria dos que defendem que o brasileiro gosta sim de cinema brasileiro. Ele só precisa ser descoberto e chegar a seu próprio público nacional.
E é também justamente a história do Brasil que vemos ao assistir a trajetória de Eunice, que de mulher do ex-deputado Rubens Paiva se tornou a mãe do Marcelo Rubens Paiva, mas que, como o próprio filho escritor nos diz no livro homônimo que inspirou o filme, foi uma grande mulher, foi a heroína da família. Mas não só da família. "A história e a vida dela veem em paralelo à história do Brasil", comentou Fernanda Torres para Splash no Festival de Veneza, no dia seguinte ao filme ter sido aplaudido por dez minutos em sua pré-estreia mundial.
"É um filme que faz lembrar que havia um Brasil, talvez ingênuo, que era progressista e utópico, que tinha Bossa Nova, Tropicália, Lina Bo Bardi, Helio Oiticica, mas que foi cortado por uma Guerra Fria, que na América do Sul foi cortado por uma ditadura militar", completou a atriz.
É interessante que o cinema de Walter Salles, sempre sóbrio e não declaradamente político, fale tanto, talvez grite, sobre o momento histórico que o Brasil viveu e, mais que isso, vive hoje, quando há quem peça, inclusive, a volta da ditadura militar.
Ao contar a história de uma mãe, de uma família, que teve seu membro amputado de maneira repentina, violenta e injusta por forças comandadas pelo próprio Estado brasileiro, Walter conta a história do Brasil. E ela chega em hora oportuna. Mas isso nunca é contado de maneira didática ou melodramática. Como diz Walter Salles, é nos espaços vazios, nas entrelinhas, que o espectador entra no filme.
"Muito ao que você se refere nasce do livro do Marcelo. É um exercício extraordinário de reconstituição histórica. É um livro que deriva desse autor que consegue olhar de dentro, mas também à distância", observou o diretor em entrevista para Splash em Veneza.
"Ainda Estou Aqui" também conta, como observa o cineasta, a "reinvenção de uma mulher que é mãe e encontra outros caminhos para continuar lutando por justiça e dar um futuro bom a cada um de seus cinco filhos. "Acho que Marcelo não poderia ter escrito este livro muito antes. É preciso tempo de decantação até para entender o papel da pessoa na família. Ele entendeu que a mãe tinha sido a heroína silenciosa da família."
Marcelo Rubens Paiva confessa que ficou surpreso que ainda haja tanto interesse nesse tema e que, assim como a geração atual não tem ideia do que aconteceu como Brasil dos anos de chumbo, talvez até as gerações que vieram desse período não saibam.
"Sim, é importante a gente contar essa história e hoje contar com uma qualidade incomparável. Cinema clássico com uma história muito bem contada. É um filme que eu vejo comovido", comentou o autor.
Para Selton, a responsabilidade de viver a parte solar do filme, de viver Rubens Paiva, foi um desafio à parte. "Eu precisava ser marcante o suficiente para seguir ecoando no espectador, para que Eunice seguisse sua busca por justiça. Ela precisa disso e o público também. Se não não aconteceria. Foi muito difícil", comentou o ator.
Selton cita particularmente a cena em que é levado pelos oficiais militares para depor. "O Selton sabia o que aconteceu, o Rubens, não", comenta. Obviamente, ele não poderia atuar comovido. Repare bem como ele desce a escada da casa para sair com um sorriso no rosto, como quem, desavisado, não tem ideia que nunca mais voltará.
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Quero receberSomente 26 anos após este dia, após Rubens morrer, a família conseguiu que um atestado de óbito, pelo qual Eunice lutou muito, fosse emitido. E a sensação dúbia de sentir alívio ao se buscar um atestado de óbito também toma conta do espectador. Mas o gosto amargo persiste. Até hoje, as condições de fato e o paradeiro do corpo de Rubens Paiva não são sabidos. A ferida está aberta, e a família Paiva é de uma coragem imensa de permitir que sua história seja escrutinada em praça pública.
Mais uma vez, como observa Selton, é um filme que se comunica com o mundo de hoje e grita, "pela via do afeto, pelos olhos dessa mulher", que jamais se deve esquecer e relativizar a violência, principalmente a praticada pelo Estado.
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