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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Em Gramado, "A Porta ao Lado" investiga os limites do sexo e da traição

 Dan Ferreira, Letícia Colin, Bárbara Paz e Túlio Starling em "A Porta ao Lado" - Desiree do Vale / Divulgação
Dan Ferreira, Letícia Colin, Bárbara Paz e Túlio Starling em "A Porta ao Lado" Imagem: Desiree do Vale / Divulgação

Colunista do UOL

17/08/2022 18h19

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Em uma edição marcada pela diversidade, que traz em sua competição oficial desde temas como a violência nas grandes cidades como São Paulo e nas capitais do Norte do Brasil, no caso, Rio Branco, ou a Ditadura e a herança que o período deixou, "A Porta ao Lado", de Júlia Rezende, surge no Festival de Gramado 2022 como um bem-vindo ponto fora da curva. Afinal, o único longa-metragem de ficção em competição neste ano assinado por uma diretora trata de intimidade, relacionamentos, sexo, amor, traição, desejo e liberdade.

Com produção de Mariza Leão, o filme é estrelado por Letícia Colin, Bárbara Paz, Dan Ferreira e Túlio Starling e não deixa de estar de acordo com a palavra-chave do festival: diversidade. O cinema do Brasil nunca foi tão diverso e comprova que nossa produção audiovisual pode, e deve, ir além das questões sociais que permeiam nossas histórias.

Resumidamente, "A Porta ao Lado" conta a história de Mari (Letícia Colin) e Rafa (Dan Ferreira). Eles formam um casal comum, que vive um relacionamento monogâmico e aparentemente feliz. Ela é chef em um restaurante que ele deu de presente para ela. Ele, executivo de um banco, é, como deduzimos, muito bem remunerado.

Porta ao Lado - Edison Vara / Divulgação - Edison Vara / Divulgação
Equipe de "A Porta ao Lado" chega para a première do filme no Festival de Gramado
Imagem: Edison Vara / Divulgação

Tudo corre bem até que um dia um casal descolado se muda para o apartamento ao lado. E a vida classe média alta sem grandes emoções de Mari e Rafa sofre o primeiro impacto. Isis (Bárbara) e Fred (Túlio) são modernos, diferentes em tudo. Têm um relacionamento aberto, conseguem separar sexo de amor e lidar com as aventuras de um e do outro sem grandes problemas. Eles decidiram não ter filhos e alternam a rotina entre a vida no apartamento e o trabalho na fazenda de vegetais orgânicos que a Isis herdou do pai francês.

O encontro entre os dois casais é o agente provocador que vai mudar tudo. Enquanto o casamento de Mari e Rafa começa a entrar em crise, a presença de Fred a desestabiliza. A aparente normalidade de seu casamento revela, na verdade, que a relação atingiu um patamar difícil de ser ultrapassado. Está tudo bem, mas não tanto. A rotina trouxe uma certa acomodação típica de todo relacionamento, que requer uma agitação ou outra para que se saia do lugar de conforto. Enquanto isso, Mari, se atrai por Fred e pela liberdade e excitação que ele provoca.

Porta ao Lado - Divulgação  - Divulgação
Dan Ferreira e Letícia Colin em "A Porta ao Lado", que aborda os limites da intimidade e da traição
Imagem: Divulgação

A cena que representa a estagnação da relação entre Mari e Rafa é talvez a melhor do filme: Durante o sexo, Mari pega um vibrador e mostra ao marido como uma boa novidade. Ele, indignado, se levanta abruptamente e pergunta se ela pensa que ele "não é suficiente" e que "queria que tudo fosse como no começo." Ela, retraída, diz que queria apenas ter prazer. "O vibrador já é uma coisa desestabilizante. 95% dos homens reagiriam como o Rafa", comentou Letícia durante coletiva de imprensa nesta quarta-feira.

A situação se encaminha para uma conversa entre a condição da mulher na sociedade em contraposição com a condição de homem negro, que Rafa / Dan é, e sobre suas origens e todo preconceito que ele já sofreu. Quem dos dois pode falar mais sobre preconceito e incompreensão?

A relação, como afirmou Letícia Colin, começa a acabar neste momento. O casamento deles atinge um ponto em que se bate contra um vidro refratário, em que há a transparência de todos os problemas não discutidos do outro lado, mas a personagem feminina, ainda que sinta que tudo está errado, não consegue se mexer. O personagem masculino não consegue nem ao menos ver através desta parede que construiu. Rafa é um típico homem brasileiro, como observou Dan. Além de seu histórico de vida, ele é fruto de uma sociedade patriarcal. Sua atitude simboliza o bom provedor tradicional, que não está aberto às mudanças do mundo contemporâneo (representadas pelo casal da porta ao lado). E sua reação intempestiva diante de um aparentemente inofensivo vibrador é reflexo disso

Interseccionar todas estas camadas pessoais, íntimas e o contexto sociocultural de cada personagem é tarefa difícil. Fazer um filme intimista, em um País com tantas urgências, mais complexo ainda. "Está muito difícil de fazer filme no Brasil. E falar de amor, afeto e desejo de uma ótica feminina é raro. Estou muito feliz de estar lançando este filme aqui no aniversário de 50 anos do festival", declarou Júlia, que com este assina seu oitavo filme.

De fato, a existência de um cinema que entra na casa e na intimidade do brasileiro, impossível de ser dissociada de nosso complexo tecido social, é mais que bem-vinda. E deve ser comemorada como um re-começo de uma tradição de filmes e histórias que tragam nossas relações pessoais, íntimas, sexuais e amorosas sem perder de vista nosso contexto social.

A cinematografia de Júlia transita entre os filmes de apelo mais popular como "Meu Passado me Condena" até mais autorais como "Ponte Aérea"(sua primeira parceria com Letícia Colin) e "Depois a Louca Sou Eu". Mas, seja qual projeto for, os relacionamentos estão sempre em pauta, com mais ou menos humor envolvido.

A diretora Júlia Rezende, única mulher na competição de longas de ficção deste ano, durante coletiva de imprensa em Gramado - Edison Vara / Divulgação - Edison Vara / Divulgação
A diretora Júlia Rezende, única mulher na competição de longas de ficção deste ano, durante coletiva de imprensa em Gramado
Imagem: Edison Vara / Divulgação

No caso de "A Porta ao Lado", a questão do sexo surge mais forte. "Qualquer investigação sobre o afeto e as relações amorosas necessariamente passa pela sexualidade e pelo desejo. Neste filme, talvez isso esteja mais explícito do que nunca de fato. Este filme partiu de uma pergunta primeira, que é, o que é traição? Muito se fala sobre isso. A traição ainda é um grande tabu social, mas, na verdade, ela é o outro lado da moeda do desejo. Como é que a gente faz com o que a gente sente?", declarou a diretora quando questionada sobre o fato deste ser seu filme mais erótico, com cenas de sexo realistas, ainda que filmadas com delicadeza.

"Se a gente está numa relação monogâmica, num casamento em que o acordo é de exclusividade, o que cada um faz com o desejo que virá? Porque todo mundo vai sentir este desejo em algum momento. Então, este era um pouco o ponto de partida do filme. E a gente vem trazer esta discussão. Quando a Mari acha que marido a está traindo na internet, isso é menos traição do que a traição dela com o vizinho? Ou quando a personagem da Bárbara diz ao marido que ele não a traiu quando saiu com a vizinha Mari, mas sim quando ele decide que quer ter um filho, sendo que eles tinham um acordo de que não teriam filhos", comentou a cineasta.

"O erotismo, o desejo e as cenas de sexo vêm a partir da necessidade de pensar estas coisas. Sexo é vida. Todo mundo faz. É natural que o cinema revele este tipo de cena. Do meu ponto de vista acho que a gente fez com delicadeza", completou Júlia.

Para Letícia, Mari está tentando entender o que sente e onde está. "Eu não sei exatamente o que a personagem está sentindo em várias cenas. E tudo bem. Isso é estar preenchido de uma indagação. É bonito pensar que a gente tem tempo dentro de um filme, dentro da vida para ter dúvida, não saber, estar perdido. Ainda mais o amor, que é um caminho tão misterioso. Eu tenho tentado trabalhar com o mistério. Eu já fui mais cheia de ferramentas para o set. Eu pude fazer isso neste filme. Conheço a Júlia, confio nela e se abriu um espaço para isso. E isso gera o lugar de uma atuação que não está só na fala. E aparecem pequenas pérolas quando a gente vai no lugar do descontrole, do mistério."

A Porta ao lado deve chegar ao circuito comercial ainda neste ano e a discussão só deve aumentar.