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Em Gramado, "A Porta ao Lado" investiga os limites do sexo e da traição
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Em uma edição marcada pela diversidade, que traz em sua competição oficial desde temas como a violência nas grandes cidades como São Paulo e nas capitais do Norte do Brasil, no caso, Rio Branco, ou a Ditadura e a herança que o período deixou, "A Porta ao Lado", de Júlia Rezende, surge no Festival de Gramado 2022 como um bem-vindo ponto fora da curva. Afinal, o único longa-metragem de ficção em competição neste ano assinado por uma diretora trata de intimidade, relacionamentos, sexo, amor, traição, desejo e liberdade.
Com produção de Mariza Leão, o filme é estrelado por Letícia Colin, Bárbara Paz, Dan Ferreira e Túlio Starling e não deixa de estar de acordo com a palavra-chave do festival: diversidade. O cinema do Brasil nunca foi tão diverso e comprova que nossa produção audiovisual pode, e deve, ir além das questões sociais que permeiam nossas histórias.
Resumidamente, "A Porta ao Lado" conta a história de Mari (Letícia Colin) e Rafa (Dan Ferreira). Eles formam um casal comum, que vive um relacionamento monogâmico e aparentemente feliz. Ela é chef em um restaurante que ele deu de presente para ela. Ele, executivo de um banco, é, como deduzimos, muito bem remunerado.
Tudo corre bem até que um dia um casal descolado se muda para o apartamento ao lado. E a vida classe média alta sem grandes emoções de Mari e Rafa sofre o primeiro impacto. Isis (Bárbara) e Fred (Túlio) são modernos, diferentes em tudo. Têm um relacionamento aberto, conseguem separar sexo de amor e lidar com as aventuras de um e do outro sem grandes problemas. Eles decidiram não ter filhos e alternam a rotina entre a vida no apartamento e o trabalho na fazenda de vegetais orgânicos que a Isis herdou do pai francês.
O encontro entre os dois casais é o agente provocador que vai mudar tudo. Enquanto o casamento de Mari e Rafa começa a entrar em crise, a presença de Fred a desestabiliza. A aparente normalidade de seu casamento revela, na verdade, que a relação atingiu um patamar difícil de ser ultrapassado. Está tudo bem, mas não tanto. A rotina trouxe uma certa acomodação típica de todo relacionamento, que requer uma agitação ou outra para que se saia do lugar de conforto. Enquanto isso, Mari, se atrai por Fred e pela liberdade e excitação que ele provoca.
A cena que representa a estagnação da relação entre Mari e Rafa é talvez a melhor do filme: Durante o sexo, Mari pega um vibrador e mostra ao marido como uma boa novidade. Ele, indignado, se levanta abruptamente e pergunta se ela pensa que ele "não é suficiente" e que "queria que tudo fosse como no começo." Ela, retraída, diz que queria apenas ter prazer. "O vibrador já é uma coisa desestabilizante. 95% dos homens reagiriam como o Rafa", comentou Letícia durante coletiva de imprensa nesta quarta-feira.
A situação se encaminha para uma conversa entre a condição da mulher na sociedade em contraposição com a condição de homem negro, que Rafa / Dan é, e sobre suas origens e todo preconceito que ele já sofreu. Quem dos dois pode falar mais sobre preconceito e incompreensão?
A relação, como afirmou Letícia Colin, começa a acabar neste momento. O casamento deles atinge um ponto em que se bate contra um vidro refratário, em que há a transparência de todos os problemas não discutidos do outro lado, mas a personagem feminina, ainda que sinta que tudo está errado, não consegue se mexer. O personagem masculino não consegue nem ao menos ver através desta parede que construiu. Rafa é um típico homem brasileiro, como observou Dan. Além de seu histórico de vida, ele é fruto de uma sociedade patriarcal. Sua atitude simboliza o bom provedor tradicional, que não está aberto às mudanças do mundo contemporâneo (representadas pelo casal da porta ao lado). E sua reação intempestiva diante de um aparentemente inofensivo vibrador é reflexo disso
Interseccionar todas estas camadas pessoais, íntimas e o contexto sociocultural de cada personagem é tarefa difícil. Fazer um filme intimista, em um País com tantas urgências, mais complexo ainda. "Está muito difícil de fazer filme no Brasil. E falar de amor, afeto e desejo de uma ótica feminina é raro. Estou muito feliz de estar lançando este filme aqui no aniversário de 50 anos do festival", declarou Júlia, que com este assina seu oitavo filme.
De fato, a existência de um cinema que entra na casa e na intimidade do brasileiro, impossível de ser dissociada de nosso complexo tecido social, é mais que bem-vinda. E deve ser comemorada como um re-começo de uma tradição de filmes e histórias que tragam nossas relações pessoais, íntimas, sexuais e amorosas sem perder de vista nosso contexto social.
A cinematografia de Júlia transita entre os filmes de apelo mais popular como "Meu Passado me Condena" até mais autorais como "Ponte Aérea"(sua primeira parceria com Letícia Colin) e "Depois a Louca Sou Eu". Mas, seja qual projeto for, os relacionamentos estão sempre em pauta, com mais ou menos humor envolvido.
No caso de "A Porta ao Lado", a questão do sexo surge mais forte. "Qualquer investigação sobre o afeto e as relações amorosas necessariamente passa pela sexualidade e pelo desejo. Neste filme, talvez isso esteja mais explícito do que nunca de fato. Este filme partiu de uma pergunta primeira, que é, o que é traição? Muito se fala sobre isso. A traição ainda é um grande tabu social, mas, na verdade, ela é o outro lado da moeda do desejo. Como é que a gente faz com o que a gente sente?", declarou a diretora quando questionada sobre o fato deste ser seu filme mais erótico, com cenas de sexo realistas, ainda que filmadas com delicadeza.
"Se a gente está numa relação monogâmica, num casamento em que o acordo é de exclusividade, o que cada um faz com o desejo que virá? Porque todo mundo vai sentir este desejo em algum momento. Então, este era um pouco o ponto de partida do filme. E a gente vem trazer esta discussão. Quando a Mari acha que marido a está traindo na internet, isso é menos traição do que a traição dela com o vizinho? Ou quando a personagem da Bárbara diz ao marido que ele não a traiu quando saiu com a vizinha Mari, mas sim quando ele decide que quer ter um filho, sendo que eles tinham um acordo de que não teriam filhos", comentou a cineasta.
"O erotismo, o desejo e as cenas de sexo vêm a partir da necessidade de pensar estas coisas. Sexo é vida. Todo mundo faz. É natural que o cinema revele este tipo de cena. Do meu ponto de vista acho que a gente fez com delicadeza", completou Júlia.
Para Letícia, Mari está tentando entender o que sente e onde está. "Eu não sei exatamente o que a personagem está sentindo em várias cenas. E tudo bem. Isso é estar preenchido de uma indagação. É bonito pensar que a gente tem tempo dentro de um filme, dentro da vida para ter dúvida, não saber, estar perdido. Ainda mais o amor, que é um caminho tão misterioso. Eu tenho tentado trabalhar com o mistério. Eu já fui mais cheia de ferramentas para o set. Eu pude fazer isso neste filme. Conheço a Júlia, confio nela e se abriu um espaço para isso. E isso gera o lugar de uma atuação que não está só na fala. E aparecem pequenas pérolas quando a gente vai no lugar do descontrole, do mistério."
A Porta ao lado deve chegar ao circuito comercial ainda neste ano e a discussão só deve aumentar.
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