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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Filme sobre liberdade retrata a saga de jovem disposta a fazer um aborto

Cena do filme "O Acontecimento" - Divulgação
Cena do filme "O Acontecimento" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

25/06/2022 04h00

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Em uma semana em que o Brasil se choca (mais uma vez) com o fato de que o direito ao aborto é negado à mulher (no caso, uma menina) mesmo quando previsto por lei, uma lista de filmes que tratam do assunto sem o filtro do julgamento moral vem bem a calhar. Alguns filmes recentes, como o contundente "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", de Eliza Hittman, e o ainda inédito "Call Jane" de Phyllis Nagy, além do clássico "Um Assunto de Mulheres", de Claude Chabrol, são ótimos exemplos.

Mas um filme chega com timing perfeito às salas de cinema de mais de 40 cidades do Brasil nesta semana: "O Acontecimento" ("L'Événement"), de Audrey Diwan, que integra a seleção do Festival Varilux de Cinema Francês.

O longa, que venceu o prestigiado Festival de Veneza 2021, será exibido em diversos horários do festival, que ocorre em cidades de todas as regiões do País até 6 de julho. A programação pode ser conferida no site oficial. Em seguida, no dia 7, o filme estreia em circuito comercial em todo o País.

Mas vamos à trama. Apesar de se passar na França dos anos 60, o drama da protagonista Anne não poderia ser mais atual. Baseado no romance homônimo de Annie Ernaux, "O Acontecimento" conta a saga de Anne (Anamaria Vartolomei), uma jovem inteligente, culta, audaciosa, ainda que discreta e circunspecta.

Filha de uma família humilde do interior, que luta para educá-la e bancar sua faculdade de letras. Anne é uma aluna brilhante, com potencial para se tornar uma acadêmica ou uma ótima autora, mas seus planos são ameaçados quando ela se depara com uma gravidez indesejada.

Ela decide que não vai levá-la adiante. Mas em um tempo em que o aborto ainda era ilegal na França, o que ela pensa, sente e quer não faz a menor diferença para quem, apesar de próximo a ela, não vive e não entende o que ela está passando. E Anne se vê sozinha, lutando contra o tempo e contra o pavor do julgamento moral e social que a gravidez vai lhe trazer.

Quando "O Acontecimento" venceu o Festival de Veneza 2021, muitos se perguntaram porque o júri presidido por Bong Joon-ho, em um ano de grandes filmes dirigidos por mulheres, havia preferido o longa da até então pouco conhecida francesa Audrey Diwan ao magnífico "Ataque dos Cães"(de Janne Campion, que levou Melhor Direção) e ao controverso "A Filha Perdida"(de Maggie Gyllenhaal).

Ainda que a direção de Diwan clássica e que a forma do longa não ofereça nenhuma revolução de linguagem, é o coração, ou as vísceras, do público que ela conquista quando mostra com sobriedade, mas sem rodeios, as humilhações, violência e dores, tanto psicológicas quanto físicas, que Anne enfrenta.

Para Audrey, era crucial que o público não observasse ou assistisse Anne, mas "fosse Anne" e se tornasse a própria protagonista. Para isso, a diretora optou por "contar a história por meio do corpo de Anne", com uma câmera que está sempre colada no corpo de Anamaria Vartolomei.

Inquieta e ansiosa, da mesma forma que Anne está, a câmera (ou a direção de fotografia) de Laurent Tangy consegue o feito de nos fazer quase sentir a angústia e as dores que a jovem sente em suas idas aos médicos, em suas conversas com amigos e amigas, em suas tentativas de conseguir realizar o que pretende.

Incapaz de abrir a questão para os pais, sem encontrar acolhimento entre os amigos, com medo do julgamento que vai sofrer dos colegas e professores, ela tenta apoio dos médicos, que também não a compreendem. Ela parte para as "vias alternativas" e então, assim como os meses passam, o volume da dor, a pressão psicológica e o desespero aumentam.

Ela muda, seu comportamento se torna agressivo nas pequenas ações do cotidiano, mas ninguém é capaz de enxergar através de sua dureza que, na verdade, represa a solidão e a fragilidade de suportar tudo sozinha (o pai da criança? Está distante, metafórica e literalmente). Mas não é exatamente "o que" e sim "como" Anne vivencia tudo isso que importa na narrativa.

"Eu fiz este filme com raiva, com desejo também, eu fiz com minhas entranhas e com meu coração e minha cabeça. E eu queria que L'Événement ("O Acontecimento") fosse uma experiência. Eu queria tentar fazer a jornada na pele desta jovem para ver se a gente talvez fizesse esta jornada… no set eu estava sempre pensando 'não vamos olhar para Anne, mas vamos ser Anne'", declarou a diretora ao receber o Leão de Ouro em Veneza. "Eu sei que a jornada pode ser feita seja você homem ou mulher. Tem muitas mulheres e homens nesta sala e a gente está fazendo a jornada juntos. Então, muito obrigada por isso", completou a cineasta.

Parece algo simples. Exercer a empatia que o cinema (e as histórias) nos provoca e dialogar com Anne, com o tema, ainda tão tabu em todo o mundo. Mas o simples nem sempre é fácil. E não foi fácil para Audrey convencer os produtores quando buscava parceiros para realizar o filme.

Ouviu muitos nãos, foi questionada sobre "por que contar uma história destas se o direito ao aborto é garantido na França", entre outras questões. Em tempo, o aborto se tornou legal na França em 1975.

Mas para ela, que realizou um aborto (por vias legais) pouco antes de ler o livro e começou a observar como o tema era tratado não só na França como em outros países, romper o silêncio e falar de algo maior que o aborto era necessário. O que é maior que o ato em si? A liberdade.

"O Acontecimento" é um filme sobre a liberdade. Liberdade sexual, liberdade de escolha, de pensamento, de se discutir e se importar com o outro (ou a outra), mesmo que isso signifique romper o pacto do silêncio e da hipocrisia.

"Quando a gente começou a trabalhar com a Annie Ernaux, a autora do livro, a gente estava falando do silêncio em torno do tema aborto e, infelizmente, a gente viu que, como as coisas são hoje em dia, infelizmente a gente viu o que aconteceu nos meses e nos dias que se seguiram no mundo. Infelizmente sempre que se fala de aborto, se faz um filme sobre isso, você vai falar de algo atual", declarou ela à imprensa em Veneza.

Impossível discordar. Impossível não fazer, novamente, um paralelo com a forma como o Brasil trata a questão. Nesta quinta, fomos informados que a menina que engravidou após ser estuprada conseguiu finalmente realizar o procedimento, previsto por lei. Mas o assunto se encerra aqui? Obviamente que não.

Em tempos em que as mulheres filmam e contam cada vez mais as histórias sob novas perspectivas, "O Acontecimento" surge como um sopro de ar, que traz à nota, com sobriedade e sem hipocrisia, a necessária discussão a respeito de algo que diz respeito a todos, sejamos homens ou mulheres.