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Flavia Guerra

OPINIÃO

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Cronenberg volta com seu tema preferido: prazer e dor entre corpo e máquina

Cena do filme "Crimes of the Future", de David Cronenberg - Divulgação
Cena do filme "Crimes of the Future", de David Cronenberg Imagem: Divulgação

Colunista do UOL, em Cannes

24/05/2022 17h10

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A expectativa era grande. Afinal, há semanas, desde que o novo filme do canadense David Cronenberg foi anunciado como um dos candidatos à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2022, os rumores em torno de "Crimes of the Future" (Crimes do Futuro) eram muitos.

Tudo porque o diretor de obras geniais como "Crash" (1998), "Videodrome" (1983) e "A Mosca" (1986) volta agora a um de seus temas favoritos: a relação entre homem e máquina. Relação de dor, prazer e até mesmo sexo. E com o tema traria de volta cenas fortes, incluindo cenas envolvendo entranhas humanas, crianças em uma trama que causaria estranheza e choque na plateia de Cannes.

A expectativa se confirmou em partes. De fato, "Crimes of the Future" traz o cineasta de volta à sua ótima forma de criar um mix de ficção científica, body horror, tratar da linha tênue entre prazer e dor e causar repulsa com a violência (calma, bem calculada) contra o corpo humano. Mas o longa não chocou quem é ou fã ou acompanha a carreira de Cronenberg, que, aos 79 anos, ainda experimenta muito.

"Crimes of the Future" tem tudo que foi adiantado, mas é um filme frio, como uma performance muito calculada, quase uma cirurgia filmada. A trama narra a história do artista Saul Tenser — vivido por Viggo Mortenssen, que já trabalhou com o diretor em "Marcas da Violência" (2005), "Senhores do Crime" (2007) e "Um Método Perigoso" (2011).

Tenser é um ser humano em evolução. Seu corpo o tempo todo cria novos órgãos, que ele retira em procedimentos feitos em parceria com Caprice (uma ótima Léa Seydoux). Ex-cirurgiã e atual parceira de performance, ela tatua e retira os órgãos novos e estranhos diante de uma plateia curiosa e encantada com as apresentações.

Tais órgãos, ou obras de arte, têm de ser registrados oficialmente. E os "funcionários do cartório de registro" são Wippet (Don McKellar) e Timlin (Kristen Stewart). Também fascinados pelo trabalho de Saul, eles frequentam as apresentações. Timlin morre de desejo pelo artista e o questiona se as cirurgiaa são o novo sexo.

Que homem e máquina sempre andaram de mãos dadas na obra de Cronenberg já sabemos. Que no mundo contemporâneo os smartphones e outras máquinas são praticamente extensão de nossos corpos também já sabemos. O que se revela em "Crimes of The Future" (que não se passa em nenhum tempo específico, mas soa como algo pós apocalíptico em que não há, aliás, smartphones) é que a raça humana está, assim como Saul, evoluindo e estão nascendo novos seres humanos capazes de digerir materiais sintéticos. Seria esta uma saída para dar conta do tanto de plástico que despejamos no planeta o tempo todo?

É neste momento que o rebelde Lang Dotrice (Scott Speedman, em ótima performance) surge. Ele pertence a um grupo de dissidentes que quer a evolução (e a revolução). Lang perdeu um filho, que seria um novo humano, com um novo sistema digestivo, e quer mostrar isso para o mundo.

Detalhar mais da trama é privar o público da experiência sensorial, fascinante, porém fria, que Cronenberg cria na tela. Ele faz cinema em sua essência e, com perdão do trocadilho, é cirúrgico ao criar atmosfera de estranhamento, fascínio e niilismo que sentimos diante da relação entre as lâminas que cortam os corpos de Saul e Caprice e que revelam suas entranhas. Detalhe: neste tempo, o ser humano não sente mais dor e nem tem infecções. A dor se tornou artigo raro, e Saul é um dos poucos que a sentem.

Será que estamos fugindo a todo custo da dor de ser humano? Será que estamos sentindo mais prazer com as máquinas que com o "velho sexo" (com o qual Saul diz ter perdido a prática)? Será que a evolução são relações sempre intermediadas por aparelhos, aplicativos e lâminas frias? Isso, de forma alegórica, é o cerne em "Crimes of the Future" em outras obras de Cronenberg que, não por acaso, escreveu o roteiro do novo filme na mesma época em que escreveu "Crash". Este sim, que chocou à época, com seres humanos sentindo prazer ao serem feridos em acidentes de carro.

Como a trama tem de avançar, há o vigilante Detetive Cope (o adorável Welket Bungué, de "Joaquim", de Marcelo Gomes, e de "Berlin Alexanderplatz"). Ele tenta manter os rebeldes em controle, tenta dar alguma ordem a um mundo que está prestes a explodir.

Mas é exatamente quando a trama está para explodir que Cronenberg encerra este conto distópico e nos deixa com a sensação que o filme não passou de um prólogo para algo maior que está por vir. Se assim o for, melhor.