Eis o mistério da fé: o estranho acordo entre atletas e fãs no Wrestlemania

Ler resumo da notícia
O WWE é um tipo específico de entretenimento que se recusa a caber em qualquer categoria convencional — esporte? Talvez. Luta? Em partes. Espetáculo? Sem dúvida. Mas também é um teatro infantil com orçamento de Super Bowl. Em questão de minutos, somos conduzidos de uma coreografia atlética digna de medalha olímpica para uma encenação que pareceria escalafobética demais até para um episódio esquecido dos Trapalhões. É essa oscilação entre o sublime e o ridículo que transforma o wrestling num fenômeno único: ele não apenas desafia os gêneros — mas ri de todos eles enquanto aplica uma chave de canela anatomicamente inviável.
Estive em Las Vegas a convite da Netflix para testemunhar, ao vivo e em cores supersaturadas, o circo maximalista que foi o WrestleMania 41. Dentro do Allegiant Stadium, cercado por 60 mil almas em estado de combustão emocional, fui tragado por um tipo de fascínio raro: a comunhão absoluta entre a mentira encenada no ringue e a entrega genuína do público. Ali, entre cadeiras numeradas e explosões previamente combinadas, o pacto ficava claro — todos sabiam que era uma farsa, e ainda assim se emocionavam como se estivessem diante de algum tipo de revelação divina. Mas era o barulho dos tapas cenográficos ecoando no infinito.
Pude confirmar minha antiga teoria de que o WWE é um exemplar de primeira classe da dramaturgia contemporânea. Herdeiro direto do teatro grego e do coliseu romano, ele satisfaz simultaneamente impulsos fundamentais da alma humana: a sede por arte e a sede por sangue. Impulsos que, no fim das contas, talvez sejam a mesma coisa — ainda mais quando se juntam com o ímpeto do consumismo desesperado. Quase fui barrado na aduaneira por excesso de bonés, camisetas e outras bugigangas de pessoas que eu nunca tinha visto antes.
Quem mais mente naquele templo das verdades que não correspondem aos fatos não são os atletas, nem os roteiristas, nem os apresentadores de terno cintilante e gel no cabelo. É o público. Mente com alegria, com fé, com a empolgação primária de quem está descobrindo o mundo de novo, como se cada pirueta acrobática fosse inédita, como se cada traição no ringue os pegasse de surpresa. Mas não existem inocentes na plateia do WWE. Todos estão lá para viver essa ilusão voluntária, esse teatro físico e barulhento que transforma o absurdo em catarse.
Assisti tudo da terceira fileira, posição privilegiada que me deixou ladeado por algumas das figuras mais excêntricas e ilustres do planeta: Vanessa Hudgens, se divertindo atentamente a cada queda; Daniel Cormier, com seus olhos de veterano de guerra; Rick Rubin, silente como um eremita em transe; Flavor Flav, em sua própria dimensão paralela; e George Kittle, da NFL, vibrando como um adolescente que os pais deixaram sozinho em casa pela primeira vez. Ainda tentei, sem sucesso, emular o gestual de Merab Dvalishvili do UFC, enquanto a Netflix se gabava da presença dele para todo o mundo com o orgulho de quem acabou de capturar um Pokémon daqueles mais raros. Era um line-up digno de um sonho febril.

O ponto alto — e talvez o mais aguardado momento de transcendência — foi o triunfo melodramático de John Cena contra Cody Rhodes. Ele surgiu como uma entidade iluminada, redentora, e naquele instante específico, tive uma visão: eu vi Deus. E Ele estava vendendo merchandising oficial da WWE. Cena é o arquétipo perfeito dessa cultura: força, carisma, autoconsciência e um talento singular para fazer o impossível parecer inevitável.
O wrestling pode ser chamado de "mentira" por quem não entende seus códigos, mas como acusar de falsidade algo que não tenta esconder sua encenação? Ninguém está sendo enganado — muito pelo contrário. É um jogo onde todos fingem, com disciplina e entusiasmo, pois sabem que fingir também é uma forma legítima de sentir. Como cantava Nelson Sargento, sábio do samba e das paixões inventadas: "Ela finge que me ama, e eu finjo que acredito." Por mim, tudo bem.
WWE na Netflix:
- Toda segunda (RAW) e toda sexta (SmackDown) ao vivo.
- Wrestlemania 41 foi transmitido pela plataforma nos dias 19 e 20 de abril.
Voltamos a qualquer momento com novas informações.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.