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Arte Fora do Museu

REPORTAGEM

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A transformação pela arte de Eduardo Kobra

Colunista do UOL

25/03/2022 10h39Atualizada em 25/03/2022 10h40

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Eduardo Kobra realiza com perfeição a máxima de colocar cores na cidade cinza. Seus coloridos trabalhos carregados de realismo podem ser vistos em São Paulo em grandes empenas. Há muito tempo que suas obras não são mais exclusividade dos paulistanos. Com pinturas em cinco continentes, Kobra virou sinônimo da arte urbana brasileira no exterior. Conversamos com ele sobre sua produção durante a pandemia e as experiências transformadoras através da sua arte.

Alguns trabalhos seus, principalmente os mais recentes, dialogam bastante com o lado espiritual. Como essa característica aparece e como o período de isolamento afetou sua arte?

Olha a gente vai passando por diversos processos de evolução, conforme a gente vai adquirindo conhecimento, viajando, conhecendo outras culturas, outras tradições, outros costumes e outras religiões. Nós vamos absorvendo muita coisa e acabamos percebendo, também, outros valores. A gente acaba adicionando alguns valores, princípios, ética e a gente vai aprendendo com os nossos erros. Então, eu estou nesse momento de entender as pessoas que sempre estiveram comigo e que lutaram comigo, passei a valorizar, realmente, tudo isso no sentido da minha arte. Entenda que eu já tive momentos em que eu estava muito preocupado com a luz e sombra, a perspectiva, a anatomia, a linguagem e a estética. Já passei por muitos desafios em relação a isso, porque pintar na rua é complicado, é diferente de um ambiente controlado, de um estúdio com uma luz, uma tela no formato que você espera e tudo mais. Na rua, você está sujeito às condições climáticas, à chuva, ao frio, ao calor e ao formato do prédio. Para você ter uma ideia, se eu quiser pintar tal coisa e, a princípio, a ideia era para um prédio no formato horizontal, mas o formato do prédio é vertical com 50 janelas no meio, você acaba não conseguindo criar algo coerente com aquele formato. Mas por que eu estou falando isso? Porque hoje, para mim, o mais importante não é nada disso, o mais importante é o que vai ser feito com aquele espaço.

Um mural que instiga a humanidade a repensar valores e fazer a diferença - Foto: @drone.cyrillo - Foto: @drone.cyrillo
Um mural que instiga a humanidade a repensar valores e fazer a diferença
Imagem: Foto: @drone.cyrillo

Qual é a ideia, o porquê de aquilo estar sendo realizado, qual seria o significado. Para mim não importa, hoje, nesse momento em que eu passei anos e anos da minha vida desenvolvendo essa questão de pintura e tudo mais, essa busca incessante, infinita. Porque na verdade a gente nunca vai aprender tudo, porque a pintura é algo que sempre tem algo a acrescentar, mas a mensagem, o significado é algo eterno. Então quando eu vou pintar, as mensagens que eu coloco na minha obra, o motivo e a conscientização são o real objetivo. Depois de mais de 30 anos pintando nas ruas, eu ainda consigo me sentir motivado para sair e pintar. Em Curitiba, chegou um rapaz que devia ter uns 30 e poucos anos e ele me mostrou a foto do mural Mão de Deus e falou "meu amigo, através dessa imagem eu consegui sair de um quadro de depressão". Parece incrível, parece inacreditável, mas é real! Ele comentou que quando ele viu aquela imagem, ele sentiu que podia ter esperança, que ele podia acreditar novamente, que tinha objetivos, coisas para ele conquistar e ele conseguiu sair de um quadro do qual já passei também. Eu entendo bem o que ele passou e quando eu pintei aquele mural, eu estava super doente, eu estava em cima daquele andaime e eu estava passando por um momento super difícil. Quem vê o mural pronto, não consegue imaginar quais são os bastidores, então todo dia eu ia para lá e ficava pensando nisso "eu preciso sair desse lugar que eu estou, eu preciso melhorar, eu preciso evoluir, eu preciso me curar disso que aconteceu comigo!" Porque eu não tenho controle, ninguém tem controle sobre nada, mas a pintura que eu fiz ali, naquele momento ela também me mudou, ela também fez sentido para mim, ela também me transformou. Então aqueles 10,12 dias que eu fiquei indo pintar aquele mural, eu tive contato com tantas pessoas, tanta gente me mandando mensagem nas redes sociais, falando que sentiram o significado daquela obra e tem tanta gente que tá afundado em drogas, depressão, desesperançosas no mesmo sentido da arte "Ah, eu não sei mais o que eu vou fazer". Essa semana mesmo recebi uma menina que me procurou falando exatamente isso. Nem eu sei o que seria isso que ela falou, mas ela disse "eu estou no nível quatro de depressão, eu não consigo mais pintar, eu não consigo mais criar, não consigo mais fazer nada, eu só fico em um quarto escuro". Então, quando você vê é uma condição que a pandemia colocou muita gente. Então, não só minha arte, mas de todos os artistas ao redor do mundo que estão colocando o seu trabalho aí, estão dando uma nova visão para a cidade, um novo aspecto para as pessoas que estão caminhando ali. As pessoas estão ansiosas, estão depressivas, estão nervosas... tudo acontece ali nas ruas e eu acho que a arte tem esse papel, independente do que cada artista pense, ou porque ele colocou o trabalho ali, eu acho que ela transforma a vida das cidades para melhor, com certeza!

Kobra, aproveitando o gancho dessas duas histórias que você acabou de contar, na sua visão, como a arte urbana impacta na vida das pessoas?

Eu fiz uma obra, no meio da pandemia, chamada "Coexistência". Nesta obra eu coloquei crianças de diferentes religiões juntas em posição de oração no momento que não tinha vacina e não tinha nenhuma perspectiva de melhora da situação. Primeiro eu fiz uma tela, um pequeno painel e depois eu fiz uma série de 100 cópias de serigrafias a respeito dessa obra. Após isso, eu estava na internet e me deparei com um caso de moradores de rua e isso, para mim, foi muito muito pesado, principalmente, por ter vivido muito tempo na cidade de São Paulo. Não é necessário você ser rico para ajudar as pessoas, você pode ajudá-las com um abraço, uma palavra de apoio, de incentivo, visitar alguém no hospital, dar uma cesta básica, existem várias maneiras. Voltando para a obra "Coexistência", eu consegui fazer um leilão com essa obra, conseguimos arrecadar um valor e transformá-lo em alimento para 20 mil pessoas em situação de rua da cidade de São Paulo.

Após o massacre de 2019 na escola Raul Brasil, Kobra fez esse mural a convite de alunos e moradores de Suzano (SP). O artista usou a mãe e o sobrinho como modelos, e recriou o símbolo da paz com imagens de lápis. - Divulgação  - Divulgação
Após o massacre de 2019 na escola Raul Brasil, Kobra fez esse mural a convite de alunos e moradores de Suzano (SP). O artista usou a mãe e o sobrinho como modelos, e recriou o símbolo da paz com imagens de lápis.
Imagem: Divulgação

E fora do Brasil, tem alguma obra que você gostaria de compartilhar os bastidores dela?

Uma vez eu fui convidado para pintar uma fábrica desativada em Roma, lá existiam cerca de 100 famílias que viviam dentro da fábrica. A ideia era pintar todo o interior e o exterior da fábrica, porque o governo local já tinha decretado a retirada de todas aquelas famílias dali. Elas iriam para uma situação muito pior do que aquelas que elas já estavam. O que aconteceu ali foi que, por conta da arte que foi colocada, houve uma sensibilização do governo, as famílias não foram retiradas do local e, ainda mais, a fábrica virou um museu. Ou seja, além do local ser a moradia daquelas pessoas, lá virou um museu, então, você caminha pelos locais onde estão as pinturas e você vê os quartos onde as famílias vivem também, é impressionante! Tudo isso foi pelas pessoas e pelas vidas que estavam ali, não havia uma mobilização por elas, então, a arte teve o papel de mudança. Não foi um trabalho apenas meu, artistas de todo o mundo inteiro foram para lá pintar.

Confira a entrevista na íntegra abaixo

Mapa com a localização de algumas obras de Kobra