Uma pêssanka à Ucrânia

Arte milenar de ovos coloridos é mantida viva por descendentes de ucranianos no Brasil e reforça mensagem de renascimento e paz nesta Páscoa em guerra

Faz 131 anos que os primeiros ucranianos chegaram aqui com a promessa de terras férteis. A maioria (80%) das 10 mil famílias se instalou no Paraná, onde o calor é ameno e o solo, bom para o trigo. Graças a igrejas e escolas, as colônias perpetuaram a cultura de geração em geração. Agora, mesmo a 10 mil quilômetros de distância, bisnetos desses ucranianos cultivam tradições como a pêssanka, arte milenar feita em ovos naturais que enaltece a vida.

Um deles é Vilson José Kotviski. Morador de União da Vitória (PR), ele escreveu dois livros sobre o assunto publicados no Brasil e explica a ligação das pêssankas à Páscoa, que começou com o advento do cristianismo como religião oficial no ano de 988.

"As pessoas se presenteiam com ovos num símbolo de renascimento e benção. Antes disso, as pêssankas faziam parte da festa da primavera, realizada na mesma época. Eram dedicadas ao deus do sol, Dajbóh, e celebravam a passagem dos invernos rigorosos. O costume era enterrar os ovos em agradecimento às colheitas passadas e para trazer boas energias ao campo".

Durante o regime soviético, porém, as manifestações culturais tipicamente ucranianas murcharam. "Era quase proibido. A URSS tentou apagar os símbolos nacionais de suas repúblicas", diz o curitibano Jorge Serathiuk, que, junto da esposa, Iara, foi convidado para viajar à Ucrânia após a independência, em 1991, para reintroduzir a arte da pêssanka no território. "Demos cursos, participamos de exposições e gravamos vídeos para serem distribuídos nas escolas".

Os imigrantes servem para isso: guardar o passado do seu país de origem. Somos depositários de cultura".

Jorge, hoje com 73 anos, trabalha com a arte desde os 30. "Criamos e formamos os nossos quatro filhos com a venda de pêssankas". O casal rodou a Europa como os únicos representantes latino-americanos em concursos. Como lembranças das viagens, ele guarda 500 ovos feitos por eles e por profissionais de outras nacionalidades. "Cada um usa uma técnica. Há inúmeras maneiras de decorar".

De segunda a segunda, Jorge sabe o que fará das seis da manhã às sete da noite: colorir ovos de codorna, galinha, ganso ou avestruz. A produção ininterrupta rende 1.500 exemplares por ano. "Levo de sete a oito dias para concluir 24 peças". Em outros tempos, mais precisamente na década de 1990, a tarefa era feita a muitas mãos. Com a participação dos filhos e da esposa somada à alta demanda, chegou a despachar 4 mil peças.

Certa vez, a atriz francesa Catherine Deneuve comprou, sozinha, cinquenta unidades. "Ela estava hospedada no Maksoud, em São Paulo, e mandou embrulhar todas as pêssankas disponíveis na loja do lobby, que revendia as nossas. Foi um furor. Depois dela, todo mundo quis".

A lista de clientes especiais não para por aí. "Pintei ovos das emas do Palácio do Alvorada para Itamar Franco. Fernando Henrique Cardoso, à época ministro da Fazenda, viu e encomendou também".

A maior de suas obras foi para o Memorial Ucraniano, em Curitiba. É uma pêssanka de 2,1 metros de altura, em cerâmica e bronze, e que replica um selo editado na Ucrânia em 2011.

Como nasce uma pêssanka

Os ovos naturais são esvaziados por meio de microfuros. Jorge injeta gesso para dar peso e resistência ao produto e pincela gema e clara por fora. Com um lápis fino, o apoio do dedinho e muito cuidado, escreve os símbolos na superfície arredondada. "Pêssanka vem do verbo pysaty, que quer dizer escrever. Por isso, é incorreto usar a palavra 'desenhar'", explica Vilson. Jorge resume a ideia:

É uma linguagem. Como se fosse um telegrama cifrado"

Diferente de uma tela, na qual o pintor traça um esboço e vê a obra se transformando diante dos seus olhos, o artista de pêssanka isola cor por cor com cera de abelha. No fim do processo, o ovo está todo escuro. Ao aproximá-lo da chama da vela — o calor é essencial para derreter o material —, as imagens escondidas são reveladas. "Nessa hora, você entende que, na arte da pêssanka, o autor também é presenteado. É um momento único. Mágico", diz Vilson. Na sequência, a peça é revestida com verniz.

Os símbolos não são escolhidos aleatoriamente. Pelo contrário: cada um carrega o seu significado. Quando os ovos faziam papel de homenagem a Dajbóh, raios de sol predominavam na casca. Com o tempo, o ambiente passou a ser expressado nos desenhos, por meio de animais, flores e plantas. A essa espécie de dicionário da pêssanka, também foram adicionadas formas relacionadas à religião.

Conforme o artesão escreve, ele deposita as suas boas vibrações e desejos no objeto. Por isso, quando alguém é presenteado com uma pêssanka, recebe com ela toda essa energia de proteção. Caso se quebre, não é um lamento, mas um agradecimento: ela foi capaz de espantar o mal.

Desça um pouco mais a tela e confira alguns dos principais significados:

Principal data no calendário ucraniano, a Páscoa de 2022 acontece meio à invasão da Rússia. A guerra causou a morte de 1.932 civis e fez 5 milhões pessoas refugiadas em quase dois meses, segundo a ONU. Por isso, a celebração deste ano reafirma os seus votos de renascimento num tom de luta e esperança. "As pêssankas levarão energia positiva, coragem, fé e confiança à Ucrânia. Estamos unidos em oração, numa corrente infinita de cultura", coloca Vilson. Jorge conclui:

Na história, a Ucrânia está sempre renascendo. E assim vai acontecer de novo. É um povo resistente".

Publicado em 17 de abril de 2022.


Reportagem: Gabrielli Menezes
Edição: Eduardo Burckhardt
Imagens e vídeo: Theo Marques/UOL, arquivo pessoal (Catherine Deneuve, Itamar Franco e Memorial Ucraniano) e Getúlio Gurgel/Palácio do Planalto (Fernando Henrique Cardoso)
Design: Carol Malavolta