machu picchu para siempre

A pé na Trilha Inca e no Caminho de Salkantay, em trem ou de carro: meus 20 anos de viagens à Cidade Sagrada

Daniel Nunes Gonçalves Colaboração para Nossa Getty Images
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O som de uma típica flauta andina tocada por um dos guias do caminho acrescentou a pitada de magia que faltava ao cenário da misteriosa cidade inca de Machu Picchu, depois de meus sete dias caminhando pela Trilha de Salkantay.

Eram pouco mais de sete horas de uma manhã do outono de 2019, e as nuvens se dissipando combinavam com a música peruana ecoando nas pedras. Que felicidade estar de volta àquela obra-prima da engenharia pré-colombiana rodeada por abismos e florestas em montanhas monumentais.

Pela quinta vez eu colocava os pés na cidade sagrada inca, e aquele fundo musical me remeteu à minha primeira experiência, no ano 2000. Foi também uma flauta-pan que encantou, à época, minha longa subida no segundo - e o mais puxado - dos quatro dias de caminhada na chamada Trilha Inca Clássica. O resgate dessa memória afetiva me fez lembrar o desejo despertado duas décadas atrás: de voltar quantas vezes eu pudesse. E assim tem sido.

A clássica trilha Inca

Com 20 e poucos anos, conhecer Machu Picchu parecia um desafio difícil de realizar naquele remoto ano 2000. Eu não sabia se aguentaria encarar quatro dias de caminhada na altitude dos Andes, não tinha companhia e estava com a grana curta para realizar o sonho de percorrer a mítica Trilha Inca.

Mas aí conheci o amigo de um amigo que tinha o mesmo desejo e resolvemos arriscar. Com mochilas gigantes nas costas, eu e o desconhecido de nome estranho - Getsemane! - nos encontramos pela segunda vez justamente embarcando no Aeroporto de São Paulo a caminho da Bolívia (viajaríamos por terra de La Paz a Cusco). E não é que deu certo? Depois de compartilhar quartos em hostels no percurso, Getsemane virou Jet e já éramos melhores amigos ao chegar a Cusco, a 3.399 metros de altitude, prontos para dividir a barraca de camping - e o perrengue - no sobe-e-desce até Machu Picchu.

Naquela época, dava para deixar tudo para a última hora. Foi na véspera do início da caminhada que contratamos um pacote com guias, carregadores e cozinheiros, aluguel de barraca, saco de dormir e entrada para o sítio arqueológico mais desejado da América Latina. Algo impensável 20 anos depois, quando as reservas para a Trilha Inca no período de férias esgotam com seis meses de antecedência.

Compramos saquinhos de folha de coca para mascar e combater o mal-estar da altitude e embarcamos no trem econômico até sermos despejados no KM 82 da ferrovia para começar a - até então - maior epopeia de nossas existências.

Os famosos desconfortos da peregrinação entre ruínas incas seculares estavam todos lá, como previsto. Mais de 40 quilômetros bem puxados - como o traumático segundo dia, que quase só tem subidas -, ausência de banheiros, um frio que despencava a temperaturas negativas na madrugada. Desafiamos a perspectiva de ficar sem banho por quatro dias e quase congelamos num tibum de poucos segundos - sob estrelas! - num riacho pelo caminho.

Já a satisfação da conquista foi inversamente proporcional. Enlouquecemos com as paisagens, fizemos amigos do mundo todo, rolamos de rir com nossa própria roubada de pegar chuvas inesperadas em plena época seca de agosto. E a chegada derradeira ao alto de Intipunku, onde fica a Porta do Sol, foi dos momentos mais emocionantes da vida - mesmo com as nuvens impedindo a gente de ter a vista panorâmica de Machu Picchu lá do alto. Era o pretexto que eu precisava para voltar um dia.

De trem, em grande estilo

Treze anos depois da minha estreia despojada como mochileiro pelos mais famosos caminhos que os incas construíram pela América Latina, tive a sorte de realizar o desejo de voltar a Machu Picchu em grande estilo, com luxo e conforto.

Já jornalista experiente, voltei na companhia do fotógrafo Adriano Fagundes em missão de documentação daquela região para nosso livro Dos Andes ao Atlântico: Uma Viagem Pelo Rio Amazonas (ArteEnsaio Editora). O Rio Urubamba, que circunda Machu Picchu, é parte do sistema que forma o Amazonas. E para lá voltei. Dessa vez, no entanto, sem caminhadas.

O requinte começou já na charmosa Cusco, antiga capital do Império Inca, o maior da América entre 1438 e 1533. Ponto de partida para qualquer jornada a Machu Picchu, a 110 quilômetros dali, a Cusco que conheci dessa vez já não era a dos hostels. Me senti um imperador inca ao me hospedar em hotéis cinco estrelas como Monastério e Palácio Nazarenas, provei da gastronomia peruana do chef Gaston Acurio no Chicha e pude presenciar, naquele junho de 2013, o Inti Raymi, a espetacular Festa do Sol dos incas.

Mas foi a jornada de trem até o simplório povoado de Águas Calientes - ou Machu Picchu Pueblo - que deu o toque final de glamour ao meu roteiro superconfortável. Batizado como Hiram Bingham - nome do explorador norte-americano que descobriu as ruínas de Machu Picchu em 1911 -, o trem da luxuosa grife Belmond nos paparicou com pisco sour, comida de qualidade, bons vinhos e animada música ao vivo - o que acabou virando uma ótima oportunidade para fazer amigos estrangeiros.

Ao desembarcar, subimos de van até a entrada do parque. Sem mochilão, sem suor, sem pernas cansadas, e revendo a imponência de Machu Picchu igual à cena de 13 anos antes. Com um bom guia, pude entender melhor o vasto conhecimento de engenharia, agricultura e astronomia dos incas que ergueram aquelas casas, terraços, caminhos. Descansado, subi o Wayna Picchu, a íngreme montanha a 2.270 metros de altitude dentro do sítio arqueológico, com os pés nas costas. Meus olhos não se cansaram de observar de novo aquela maravilha.

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YinYang/Getty

Todos a bordo

Carro algum chega ao povoado de Águas Calientes, base para quem visita o sítio arqueológico. Ou você chega a pé, via Trilha Inca Clássica, ou terá obrigatoriamente de pegar um trem - seja por 3h30 desde a Estação de Poroy, a 20 minutos de Cusco, ou mais comumente desde a Estação de Ollantaytambo, uma das cidades mais bacanas do Vale Sagrado. Mesmo quem faz o Caminho de Salkantay ou viagens de carro pelo Vale de Lares tem que parar em Ollanta para pegar o trem, com uma viagem que dura 90 minutos. E aí surge a dúvida: qual dos trens pegar?

Chamado Expedition, o trem básico custa US$ 77 e é operado pela Inca Rail. Ainda que seja o mais econômico, tem o mesmo visual incrível dos outros trens. Quem quiser pagar só um pouco mais pode viajar no VistaDome, que tem teto panorâmico para ver melhor os topos das montanhas. Sai por US$ 96 pela Peru Rail. Prefere chegar com pompa, boa música, comendo e bebendo bem? Então invista US$ 535 no Hiram Bingham. Os mimos todos, aliados a um visual espetacular, valem o quanto custa para quem pode pagar.

Road trip entre pueblos

Nem caminhadas pesadas, nem viagens de trem sem andar nada. Em 2016 e 2017, embarquei por duas vezes em superfotogênicas viagens de carro de cinco dias pelo Vale Sagrado e pelo Vale de Lares, que ficam no caminho entre Cusco e Machu Picchu.

Estas
road trips entre a antiga capital inca e a atual meca do turismo arqueológico da América Latina são organizadas por hotéis que ficam no caminho. São eles que conduzem o roteiro de carro em que o hóspede escolhe quando e quanto quer andar por trilhas incas alternativas. No restante da rota, o viajante segue curtindo o conforto de uma van.

Ideal para quem viaja em turmas de amigos - como era o meu caso - ou com família, as road trips pelas estradas andinas permitem fazer uma imersão na cultura, na culinária e nos ofícios dos pueblos. Nos dois casos, minhas jornadas foram conduzidas pelo
Mountain Lodges of Peru, grupo de hotéis de montanha rústico-chiques que proporciona hospedagem e passeios por lugares com poucos turistas. Nessas comunidades no meio do nada, é fácil interagir com as pessoas e viver um pouco da rotina dos moradores.

Em 2016, eu estava em um grupo de criativos do Projeto Creators, da operadora Terramundi, e notei bem essa interação no Vale de Lares. A chef de cozinha Bel Coelho, por exemplo, ajudou os cozinheiros a preparar ceviches para o jantar no lodge de Huacahuasi. Neste hotel, os próprios nativos co-gerenciam o espaço, vestindo seus trajes típicos e multicoloridos. Na mesma viagem, o músico Bem Gil tocou com músicos locais e a estilista Flávia Aranha, que pesquisa técnicas ancestrais com uso de tecidos e tingimentos naturais, trabalhou junto às tecelãs tradicionais do povo de Choquecancha.

Quando voltei para repetir o roteiro em um grupo de jornalistas, em 2017, fizemos esticadas mais longas, de 3 ou 4 horas por dia, a lagos ou montanhas fantásticas, sempre pernoitando em um lodge diferente a cada noite. Participamos até de um ritual de agradecimento a Pachamama, a Mãe Terra, com um xamã peruano.

Ao chegar, enfim, à cidade sagrada, vivi uma experiência inédita: escalar a montanha Machu Picchu, com 3.082 metros de altitude, que rivaliza com Wayna Picchu como um dos pontos mais altos (e possíveis de visitar) para observar, de camarote, o sítio arqueológico.

Salkantay, a rota mais difícil

Mais cênica, mais alta e mais difícil. A rota mais desafiadora para chegar a Machu Picchu, ao menos entre os roteiros turísticos, é o Caminho de Salkantay. Depois de fazer o trekking da Trilha Inca e as viagens de trem e de carro, faltava esta experiência.

Realizei este desejo em 2019 com um grupo de caminhantes casca-grossa. Entre eles a médica Karina Oliani, primeira mulher sulamericana a escalar o Everest por duas faces, e Mario Mele, experiente em coberturas de esportes outdoor pela Revista Go Outside.

O desafio de andar muito, sob frio e chuva, e de ter que cruzar o rio suspenso em cadeirinhas improvisadas (porque o caminho original tinha sido destruído por uma avalanche) foi compensado pelo conforto dos lodges de montanha a cada noite. Algo que não acontece com que percorre Salkantay acampando ou hospedando-se nos domos, alojamentos rústicos em forma de iglus que viraram uma tendência na região.

Entre tantas opções de viagem a Machu Picchu, cada viajante pode escolher o formato mais adequado ao seu perfil. O desfecho, é claro, será a mesma fantástica cidade sagrada. Tenho, porém, argumentos para votar no Caminho de Salkantay como o melhor para apaixonados por caminhadas como eu:

É a rota mais cênica: a vista da montanha de Salkantay, que dá nome à trilha, a partir do pequeno povoado andino de Soraypampa, onde começou nosso trekking, é imbatível. Da majestade dos seus 6.721 metros de altitude, o pico nevado abençoa as maravilhas do seu entorno. A beleza inclui outros topos com neve branquíssima e o lago azul de degelo do glaciar Humantay, onde eu e meu grupo seguimos um xamã local em um ritual de agradecimento a Pachamama, a mãe-terra dos povos andinos - foi meu segundo ritual do gênero, e continuo achando uma experiência sublime.

É a mais alta: todo viajante vai sempre estranhar a altitude desde que pousar em Cusco, a 3.400 metros de altitude. Toma-se muita água, masca-se folha de coca, caminha-se lentamente até que o organismo se adapte. O ponto mais alto da Trilha de Salkantay, a passagem a 4.638 metros de um lado a outro da crista das montanhas, deixa muita gente de língua de fora. O esforço é recompensado pela caminhada do lado de lá do morro, ladeando o Rio Salkantay.

É a mais difícil: ao final de 55 quilômetros ao longo de sete dias por Salkantay - contra uns 45 quilômetros por 3 dias em uma altitude máxima de 4.215 metros na Trilha Inca Clássica -, a sensação de missão cumprida torna especialmente glorioso o desfecho da viagem em Machu Picchu. Palavra de quem segue voltando para a cidade sagrada dos incas sem enjoar, e curtindo rotas e modalidades distintas a cada viagem.

O chamado de Pacha Mama

Confira o filme sobre o Caminho de Salkantay eleito o melhor vídeo de aventura no Adventure in Motion Film Contest

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Livinus/Getty

Overturismo

Uma coisa nem a doce flautinha no caminho e tampouco as doces lhamas que ainda habitam as ruínas de Machu Picchu conseguem disfarçar. A cidade mística que encontrei 20 anos depois está muito mais turística do que aquela em que dava para chegar de última hora e comprar um dia antes o pacote de guias+barracas+carregadores+comida para fazer a icônica Trilha Inca.

Machu Picchu virou um dos destinos da América do Sul que mais sofrem com o chamado "overturismo", o turismo massivo que superlota destinos, incomoda a população local e deixa os próprios turistas insatisfeitos.

O antídoto para tentar controlar o sucesso exagerado tem sido rigoroso mas certeiro: o governo estabeleceu um limite diário de 500 visitantes novos por dia na Trilha Inca, o que obrigou que os ingressos para a caminhada clássica passassem a ser comprados com até seis meses de antecedência para a alta temporada.

Além disso, os preços dispararam: custa mais de 700 dólares contratar todo o serviço de barracas, refeições e carregadores para a caminhada de quatro dias com o guia obrigatório. O simples acesso ao parque arqueológico de Machu Picchu custa 45 dólares e cobra-se 24 dólares só pelo ônibus de 20 minutos que leva do Pueblo de Machu Picchu.

É ali que ficam os hotéis e a estação de trem de Águas Calientes, até a entrada das ruínas, no alto da montanha (dá para subir a pé de graça, mas é uma ladeira bem cansativa). Nas alturas, uma mudança positiva: a exigência de agendamento de horários para visitas acabou com a desagradável muvuca na porta.

Os caminhos que levam

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Trilha Inca Clássica

- Pernoites em campings organizados e obrigatoriedade de guia
- Banheiros e chuveiros bem rústicos, sem conforto
- Comida de acampamento todo dia feita por carregadores
- Sempre cheia, é boa para fazer amigos do mundo todo

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Caminho de Salkantay

- Dorme-se em camping selvagem, iglus básicos ou lodges finos
- Quem acampa não tem banheiro; já lodges oferecem jacuzzi e até massagem
- Campistas carregam e preparam sua comida; há comida de chef nos lodges
- Com poucos turistas, permite caminhadas -e até cavalgadas - silenciosas

Getty

De carro

De van com motorista via Vale Sagrado e Vale de Lares: 5 dias
- Hospedagem em lodges refinados, alguns geridos pela comunidade
- Refeições gourmet com ingredientes e preparos típicos locais
- Inclui cidades clássicas do Vale Sagrado como Pisac e Ollantaytambo
- Passa-se dias sem ver turista algum no inexplorado Vale de Lares

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De trem

Para quem gosta de curtir o caminho
- Três categorias de trem de Cusco ou Ollantaytambo até Águas Calientes
- Para quem parte de Cusco (Estação Poroy) a viagem dura 3h30
- Desde Ollantaytambo (a cidade vale a visita), o roteiro leva 90 minutos
- Opção de trem de luxo com jantar, vinhos, pisco e música ao vivo

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