LADO B DOS NÔMADES DIGITAIS

Eles viajam o mundo, são chefes de si mesmos, têm liberdade de horários e, acredite, também sofrem com isso

Rachel Verano Colaboração para Nossa Divulgação

Kandy é uma cidade encantadora no coração do Sri Lanka, cercada de montanhas cobertas de verde, coroada por um belo lago e pontilhada de templos budistas seculares. Mal desembarcou nesse cenário, que há tempos sonhava conhecer, a gaúcha Mônica Morás - a Mônica, do blog Eduardo e Mônica - desmoronou. "Sentei na cama e desabei a chorar", diz ela. "Eu não queria mais conhecer nada, nem falar com ninguém. Era uma exaustão mental enorme. Eu repetia que não queria mais aquela vida, estava desesperada."

Aquela vida, no caso, era a vida de quem estava na estrada havia quase dois anos. De quem, nos últimos tempos, havia embarcado em uma viagem épica pela ferrovia Transiberiana na Rússia, passado dias com os nômades na Mongólia, percorrido trechos da Muralha da China e conhecido algumas das praias mais idílicas em ilhas da Indonésia, além de ter carimbado o passaporte em mais de uma dezena de outros países do outro lado do planeta. Resultado: cinco dias em que mal saiu do quarto. "Foi tipo novela mexicana, princesa da Disney... eu ficava sentada na cama soluçando!", lembra ela. "Para piorar, me sentia culpada de as pessoas amarem o Sri Lanka e eu simplesmente não estar conseguindo curtir!"

O remédio foi parar temporariamente. Cancelar a ida para a Índia e as Maldivas e voltar para o lugar que chamava de casa naquela época - a Tailândia. Não demorou muito para que a paixão pelas viagens voltasse. Mas, desde então, as crises aparecem e desaparecem. E lá se vão três anos. "São momentos para repensar tudo, especialmente a forma de trabalho", diz.

Isso significa, basicamente, ter disciplina: para estabelecer limites para o trabalho, horário para as coisas do dia a dia e, principalmente, momentos específicos para interagir com os milhares de mensagens que chegam diariamente de leitores e seguidores. Não é tarefa fácil - Mônica se lembra de ter ficado dois dias na Amazônia sem internet e, ao voltar para a civilização, se deparar com mais de 7 mil mensagens.

Vida sem filtro

Mônica e o marido, Eduardo Viero, têm o emprego que meio mundo sonha ter: são fotógrafos e blogueiros de viagem. Conhecem lugares extraordinários, mergulham nas praias mais bonitas do mundo, fazem amigos nos quatro cantos e... sim, são pagos para isso. O que Mônica revela com o seu depoimento, no entanto, é o outro lado da moeda, aquele que o Instagram dos filtros coloridos e da vida perfeita não mostra: o mesmo estilo de vida que já a levou a 49 países desde 2014, quando caiu na estrada para o que seria apenas um ano sabático e nunca mais voltou, pode ser um grande (e muitas vezes penoso) desafio.

Já imaginou, por exemplo, ficar sem férias por cinco anos consecutivos, incluindo trabalhar aos sábados, domingos e feriados? E, quando isso finalmente for possível, durar apenas... uma mísera semana? Pois foi exatamente o que aconteceu com o casal, que acaba de voltar de Jericoacoara, com a liberdade de "olhar o celular só quando quisesse", segundo Mônica. "Foi a primeira vez que conseguimos e foi maravilhoso!"

Férias? Que férias?

Enquanto, para muita gente, ir para um lugar paradisíaco significa esquecer o relógio, acordar sem despertador e passar horas a fio sem fazer nada na beira da praia, a realidade para os nômades digitais costuma ser bem diferente. "A gente não consegue ter nem uma hora de relax por dia", diz Adolfo Nomelini, de 31 anos, um dos nomes por trás do blog Esse Mundo é Nosso, que conta com mais de 1 milhão de pageviews por mês e 246 mil seguidores no Instagram. "Nosso compromisso é dar muita informação em tempo real durante a viagem, através de vídeos para o YouTube, stories e posts no feed das redes sociais.".

Adolfo engrossa a lista de quem nunca mais viajou livre, leve e solto depois que estar na estrada virou sinônimo de trabalho. Se por um lado a rotina que já o permitiu passar dois meses na Ásia, voar de balão e emendar Israel com uma festa religiosa no Pará e com Fernando de Noronha na sequência o encanta, por outro o deixa simplesmente exausto, com a obrigação de estar online praticamente 16 horas por dia, independentemente do canto do mundo onde esteja.

"No dia a dia, não dá para ir para à academia e marcar médico é sempre uma dificuldade. Não ter rotina é muito cansativo", diz ele. "Sem contar que você vira aquela pessoa que nunca pode nada, que não vai a aniversários, que não está presente no dia das mães... já tive que sair correndo para o aeroporto à uma hora da manhã em pleno dia de Natal." Desde que saiu do trabalho fixo para se dedicar integralmente ao blog, há três anos, ele só conseguiu tirar sete dias de férias - ainda assim, com a responsabilidade de fazer fotos e produzir stories todo santo dia, para depois escrever detalhadamente sobre o melhor da República Dominicana.

Expectativa X Realidade

"A vida de nômade é muito diferente do que as fotos do Instagram aparentam", afirma a jornalista Anna Laura Wolff, de 27 anos, dona do blog Carpe Mundi e de um dos mais cobiçados feeds da rede, onde reúne nada menos que 528 mil fiéis seguidores no perfil @anna.laura.

Obcecada pela imagem perfeita, Anna coleciona perrengues. Eles vão desde madrugar antes do nascer do sol para estar a postos aos primeiros raios a quilômetros de distância até morrer de calor para fazer fotos de parcerias com roupas de inverno sob um sol escaldante, durante horas, no auge do verão.

Há, também, situações mais graves, como a que a levou a uma emergência com tanques de oxigênio em pleno Deserto do Atacama, graças ao ar rarefeito. "Eu precisava fazer uma foto específica porque havia negociado em uma parceria comercial. O lugar era meio longe e eu tinha pouquíssimo tempo, então saí correndo e depois passei muito mal", conta.

Graças ao seu trabalho, minuciosamente estudado e planejado desde o início, Anna Laura conhece 38 países e coleciona experiências pra lá de vips, como ter se hospedado no maior bangalô do mundo construído sobre as águas, nas Ilhas Maldivas, com diárias de 18 mil dólares, ou ter descido de rapel o Farol Santander, em São Paulo, numa ação exclusiva com influenciadores digitais patrocinada uma marca de câmeras.

A lista é longa e inclui de noites em tendas de alto luxo no Saara a testes de hotéis em Seychelles ou safaris para ver os raríssimos tigres de bengala durante um retiro de yoga no Rajastão, na Índia. Mas ela confessa: a demanda digital é intensa, estressante e já deixou sequelas sérias. "No final do ano passado eu tive um burnout depois de emendar várias viagens. Quando cheguei ao quinto destino, simplesmente não dei conta. Tinha que produzir tanto conteúdo, unir tanta coisa, postar, tudo ao mesmo tempo... Surtei!", diz ela, que precisou ficar alguns dias completamente off-line para se recuperar. "Foi muito frustrante."

Vício digital

É justamente este excesso de demanda digital a principal queixa dos nômades que produzem conteúdo de viagem. No caso do administrador Leonardo Spencer, de 34 anos, a metade masculina do blog Viajo, Logo Existo, seguido por mais de 600 mil pessoas no Facebook, ela passou a ser monitorada com rigor e controlada por uma rotina rigorosa estabelecida.

Leonardo pediu demissão de um cargo como executivo financeiro de um grande banco e caiu na estrada em 2013, com um projeto ambicioso: dar a volta ao mundo de carro ao longo de três anos e meio. Deu tão certo que ele nunca mais parou. "Uma vida mais saudável e mais equilibrada é possível, não queremos sequer alimentar este vício da dependência digital."

Divulgação / Arte UOL

3 perguntas para o expert

Há quase três anos, o catarinense Matheus de Souza, de 30 anos, começou a sua vida de nômade digital. De lá para cá, já "morou" em 17 países, se lançou como escritor e educador virtual, quadruplicou sua renda anual e virou um expert no assunto.

Recentemente ele lançou "Nômade Digital - Um Guia para Você Viver e Trabalhar Como e Onde Quiser" (Autêntica Business), o primeiro livro brasileiro sobre o tema. Eleito o terceiro brasileiro mais influente do LinkedIn na lista de Top Voices de 2016, ele tem 150 mil seguidores de seus passos profissionais na rede. Atualmente baseado em São Petersburgo, na Rússia, onde realizou o sonho de ver neve pela primeira vez, ele fala sobre o caminho que escolheu para ter liberdade e contrariar o que chama de "roteiro que a sociedade define para as nossas vidas".

Por que tanta gente quer ser nômade digital?

Por uma junção de fatores. Primeiro, as pessoas perceberam a possibilidade de ter liberdade e flexibilidade para trabalhar onde quiser, desde que haja sinal de internet. Segundo, as pessoas descobriram que algumas profissões permitem isso e que não é preciso esperar até a aposentadoria para viajar e curtir a vida - ninguém sabe se vai chegar até lá! Terceiro, cada vez mais gente começou a fazer isso, e virou tendência. Aí você entra nos instagrams dos nômades e é toda aquela vida de viagens. As pessoas caem no fetiche de largar tudo e viajar o mundo.

O que é preciso ter em mente antes de decidir ser um nômade digital?

O principal é: não existe este negócio de largar tudo. Quem pensa "vou me demitir agora, vou largar tudo e vou ser nômade" vai acabar mal. É preciso ter muito planejamento, alguma reserva financeira, ser um profissional multidisciplinar, falar inglês, saber separar o que é trabalho e o que é lazer. Nem todo mundo tem o perfil de conseguir se virar em outro país. Também tem gente muito apegada à família e aos amigos e talvez isso não seja legal para a saúde mental dela...

O que você diria para quem associa a vida do nômade digital a glamour, mordomias, liberdade?

Eu diria que a parte da liberdade é a única dessas três que é para todo mundo que escolhe este estilo de vida.

Blogueira? Não, obrigada!

Um dia o escritório pode ser uma praia na Tailândia. Outro dia, um lodge nas savanas africanas. O chefe? Você mesmo. Sem horários pré-determinados, sem burocracias, sem ter que bater ponto. Quem nunca sonhou viver assim? O nomadismo digital é cada vez mais praticado no mundo todo, mas os especialistas são unânimes: ele não é para qualquer um. "Existe uma glamurização enorme do tema", diz a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da Associação Internacional de Gerenciamento do Stress (ISMA) no Brasil. "Nem todas as pessoas têm perfil para se submeter às vantagens e desvantagens de viver sem raízes." (veja box)

Foi exatamente a essa conclusão que chegou a jornalista Betina Neves, de 29 anos, depois de quatro anos na estrada. Em março deste ano, ela foi radical e abriu mão de sua bem sucedida carreira de blogueira e influenciadora digital.

"Eu nem vivia as viagens direito porque tinha que ficar fazendo stories, era uma exposição intensa. Você nunca está presente no lugar onde está, não dá para ter saúde mental assim!", diz. Ansiedade com a demanda digital, excesso de trabalho e solidão estão entre os pontos que mais pesaram em sua experiência.

Depois de graves crises de stress que a levaram a ter ataques de choro em plena Paris, a dias de cama sem conseguir se mexer por conta de uma depressão em Bangkok ou a uma temporada de insônia em Budapeste mesmo depois de quatro noites sem dormir por causa do trabalho, a decisão de romper veio na sequência de uma viagem de seis meses pela Ásia, onde Betina passou uma longa temporada vivendo em comunidade, em um retiro de meditação e yoga.

"Quando voltei, ficou claro que eu não queria mais investir minha vida nisso", diz ela. Desde então, ela tem viajado como gosta: sem postar nada durante a viagem, escolhendo os destinos livremente, ficando muito mais tempo em um só lugar. Esta entrevista foi concedida a partir de um café na região do Big Sur, na Califórnia, num de seus raros momentos de conexão à internet - Betina estava hospedada em uma fazenda isolada de tudo por um mês e meio, completamente desligada do mundo virtual e mais realizada do que nunca.

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