Caminho sem volta

O turismo vê um novo perfil do viajante de negócios após a popularização das videoconferências na 'era Zoom'

Felipe Mortara Colaboração para Nossa iStockphotos

Em 2019, segundo a GBTA (Global Business Travel Association), o mercado global de viagens de negócio girava em torno de US$ 1,5 trilhão. No mesmo ano, esse segmento movimentou R$ 76 bilhões e cresceu 9,5% no Brasil, de acordo com a Abracorp (Associação Brasileira de Viagens Corporativas).

Com a chegada da pandemia, o ano passado registrou perdas de aproximadamente R$ 50 bilhões no setor no Brasil — só no bimestre abril-maio, a retração foi de 97%. O home office reconfigurou modelos de trabalho e gerou questionamentos sobre a real necessidade das viagens para se fechar, de fato, novos negócios.

Neste final de 2021, há um horizonte mais otimista. Com a vacinação avançando, desde agosto passado o setor vive uma curva ascendente.

Embora órgãos internacionais como a GBTA apontem que a recuperação deve vir somente em 2025, há quem espere que esse ano alcance algo entre 60% e 70% do que tal mercado era em 2019. Mas pesquisa realizada no primeiro semestre deste ano pelo TRVL Lab, em parceria com a Elo, revelou que as constantes viagens a trabalho de algumas profissões passarão a ser mais restritas também por conta do impacto delas nas relações familiares.

Um dos maiores especialistas no setor, Gustavo Bernhoeft, sócio-diretor da LTN Brasil e diretor da TP Corporate (em sociedade com a Teresa Perez Tours), divide nesta entrevista suas impressões sobre o mercado atual e os caminhos possíveis para o turismo de negócios.

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Gustavo Bernhoeft, sócio-diretor da LTN Brasil e diretor da TP Corporate

DESLOCAMENTOS ESSENCIAIS

Na sua opinião, as viagens de negócios poderão ser substituídas por ferramentas como o Zoom, Teams e Skype? Quais continuarão a acontecer?
Várias viagens serão substituídas, não há dúvidas. Tem um conceito de que "só prevalecerão as viagens essenciais para o negócio". Há as circunstâncias estratégicas, nas quais conversas mais importantes serão conduzidas e decisões serão tomadas. Viagens emergenciais por alguma contingência também vão continuar acontecendo para estar junto a fornecedores e clientes.

No caso de indústrias de alta tecnologia, se um maquinário quebra, um técnico viaja de algum lugar reparar. Um terceiro tipo de viagem são as de manutenção de vínculos e relacionamentos.

Se a minha empresa tem uma cultura de vendas forte, preciso ter meu vendedor lá na frente do meu cliente; porque se a minha concorrência conseguir, eu vou perder.

Tenho um cliente daqui de São Paulo que contratou um time de vendas com profissionais no Canadá, na Itália e em Belo Horizonte. Em algum momento, as pessoas que saíram das grandes cidades precisam estar fisicamente presentes. Por outro lado, outras viagens passarão a acontecer. Por exemplo, para aproximar um time que está disperso, criar circunstâncias de celebração e fortalecer vínculos. Novas necessidades de viajar também vão surgir. É o que eu acredito.

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BAQUE BRUSCO E RETOMADA

A pandemia redefiniu vários segmentos. É possível dizer que as viagens corporativas foram transformadas para sempre?
Acho que sim. As viagens a trabalho se tornaram um tema mais sensível e mais estratégico nas organizações, o que acaba exercendo um fator de transformação em cadeia, nos parceiros e fornecedores.

Antes da pandemia, o processo de digitalização e adoção tecnológica já era intenso. Só que a lógica era "eu não preciso de um agente de viagem, eu mesmo faço isso". O que percebemos com a pandemia é que aumentou o valor da orientação e a possibilidade de oferecer tranquilidade e retaguarda para esse viajante.

Acho que o futuro será um híbrido de "hi-tech" e "hi-touch", um misto de tecnologia e empatia.

Como consultor eu preciso conseguir solucionar os anseios de o cliente viajar num cenário incerto. Isso nenhum sistema digital consegue fazer. É adoção de tecnologia, praticidade e confiabilidade dos sistemas, aliada a um serviço humano de suporte. A velocidade com que as informações mudavam no ápice da pandemia era imensa. O viajante se sentiu tão exposto e vulnerável que passou a cobrar das agências outro tipo de serviço.

Como foram 2020 e 2021 para o turismo de negócios e qual a situação no momento?
São duas coisas diferentes. 2020 foi muito diferente do fechamento de 2021. O mercado vinha em um crescimento acelerado, num processo de sofisticação digital bem nítido. O tema "viagens corporativas" ganhava mais espaço dentro das empresas, tanto na questão de mobilidade quanto na de eventos e feiras.

Na LTN vínhamos tendo crescimento de dois dígitos nos últimos quatro anos antes de 2019. Em 2020, com a pandemia, tivemos uma paralisação quase completa.

Ninguém conseguiria dimensionar o impacto e prejuízo que isso poderia causar numa cadeia tão extensa. Foi muito repentino, agudo e sem perspectivas de resolução.

Muitas empresas fecharam, muitos ficaram sem trabalho. Processos de consolidação aconteceram, todos procuraram uma saída. Mas no fim de 2020 percebemos uma intenção de retomada. E aí veio a segunda onda e a coisa se agravou ainda mais.

Em 2021, temos visto a partir de agosto uma curva ascendente por conta da reabertura e há alguns bons indicadores. Tem gente falando de algo entre 60 e 70%. Acredito que chegar a 60% do que era nosso negócio em 2019 é um número otimista.

Gustavo Bernhoeft

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UMA NOVA ROTINA

Que mudanças significativas ocorreram no dia a dia do setor?
Muitas agências operaram em modo sobrevivência e agora estão vendo uma oportunidade de se reconstruírem. Tivemos que dispensar 80% do nosso time. Hoje estamos com 70% do que era a nossa estrutura em 2019, sendo que muitos voltaram.

O mercado está num modo de reorganização e lidando com uma realidade diferente. Houve um reenquadramento do tema "viagem corporativa". Viajar a negócios era parte do dia a dia, uma ferramenta de negócios para as empresas.

O Zoom e o Skype não foram inventados na pandemia, mas foram simbólicos e cruciais. Percebeu-se que os negócios continuaram a acontecer sem as viagens, o que trouxe uma outra reflexão: será que é necessário e será que as pessoas querem viajar a negócios?

A gente ainda não viu como o mercado se reconfigurou, mas temos pistas de como vai se reorganizar. O tema viagem se tornou mais estratégico nas empresas. Era um assunto corriqueiro que acabou tomando uma importância maior nas discussões porque outros fatores entraram em questão. A segurança e o bem-estar do viajante, a real necessidade disso, os custos e as alternativas do digital.

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Como essa nova realidade se reconfigura?

Muitas empresas adotaram o trabalho remoto, entendendo que as pessoas querem estar em casa e podem ser igualmente produtivas. Mas a ampla adoção desse modelo remove também a convivência, o encontro e a intimidade. Nesse aspecto, ganha força a importância dos encontros para a manutenção da cultura, da produtividade e da comunicação. Inclusive com viagens a trabalho.

Entendo que posso ter uma reunião igualmente produtiva sem nos encontrarmos pessoalmente. Mas também entendo que em momentos e circunstâncias específicos só serão produtivos cara a cara.

Temos aí uma pista do que será esse futuro híbrido. Sim, o digital ampliou o alcance, agilizou as conexões, é mais econômico, mas também remove da equação o valor da relação entre pessoas. Além das pautas de negócios, são circunstâncias que aproximam e estabelecem vínculos e confianças, mas que são elementos essenciais aos negócios também.

O mercado está apostando que vai reduzir a reunião que poderia ser um e-mail, a viagem que poderia ser um zoom. Aquela viagem de bate e volta para o Rio, para um papo com um par, provavelmente não vai mais acontecer.

Gustavo Bernhoeft

UM NOVO VIAJANTE

Enxerga uma tendência de humanização da tecnologia nas viagens?
Pessoas querem ser atendidas por pessoas. Desejam que do outro lado da linha um outro ser humano perceba suas particularidades, inquietações e vulnerabilidades. Quem nunca perdeu um voo ou teve mala extraviada? As pessoas não querem conversar com robôs. Acho que a pandemia agravou essa sensação.

Essa é a nova integração, uma mudança de rota de um movimento de aceleração tecnológica que vinha acontecendo de forma muito aguda. O agente de viagens contemporâneo precisa estar atento a aspectos subjetivos. Ter uma atitude empática, entender a perspectiva desse viajante de uma forma ainda mais acentuada.

Existe a necessidade de treinar sobre protocolos de saúde, restrições, LGPD, regras de vacinas, passes sanitários para eventos. Mas, mais do que isso, o agente precisa se colocar no lugar desse viajante para antecipar as inquietações e dúvidas que esse viajante pode ter. O cliente quer ter alguém experiente que consiga dar tranquilidade para ele e sua equipe. Tecnologia na mão de gente muito boa é a fórmula para a indústria se adequar às novas demandas desse novo "viajar a negócios". Mas, além do novo viajar, precisamos entender a nova cabeça desse novo viajante.

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