Um amor chamado padaria

Ou melhor, padoca. Para os paulistanos, o pão é só o ponto de partida da relação

Mônica Santos Colaboração para Nossa Keiny Andrade/UOL

Padarias existem no Brasil inteiro e muitas tão boas como as da maior capital do país. Mas a relação que o paulistano mantém com elas é única. Belo-horizontinos são apaixonados por botecos, cariocas não vivem sem casas de suco e paulistanos amam suas padarias, que carinhosamente chamam de padocas.

Para paulistano, padaria é extensão da casa, divã, home office, mercado, bar e até balada. Em seus democráticos balcões, consomem o pão com manteiga de cada dia o gari, o engenheiro, a secretária, a senhorinha e o policial. E é para celebrar e valorizar essa cultura que Nossa, plataforma de lifestyle do UOL, apresenta o Padocaria SP, concurso que vai premiar as melhores em 13 categorias — a votação começa nesta quinta-feira (7) e você pode indicar suas preferidas.

Radicado na Vila Madalena, o jornalista americano Matthew Shirts vive a se aventurar pelas padocas desde 1979. Frequentador e fã das mais tradicionais, interessam-lhe, sobretudo, a diversidade das pessoas que circulam no ambiente e as gírias.

Uma delas, dita certa vez por um chapeiro, rendeu-lhe uma crônica chamada "Saindo um americano viajando na canoa". "Não é genial isso significar que está pronto um tipo de sanduíche em pão sem miolo para viagem?", diverte-se.

"Um pão na chapa e uma média, por favor"

Para o dramaturgo Mário Viana, o jeitinho do paulistano de fazer seu pedido entrega que essa relação tem algo a mais. "Nunca é simples. Uns gostam do pão na chapa, outros pedem para prensar, há quem dispense o miolo. E o café então? Põe leite, faz com leite frio, coloca mais leite do que café, só a espuminha... E o mais incrível é que os atendentes e chapeiros atendem com prazer".

Habituado a observar as pessoas para criar os personagens dos seus roteiros de teatro, de TV e para as crônicas que escreve no blog Vianices, Mário elaborou a sua própria teoria para o assunto.

Acho que ficamos assim, mimados, pelo excesso de intimidade que temos com esse tipo de estabelecimento"

"Para o paulistano, padaria é aquele puxadinho de casa, onde tudo pode", diz ele, que também tem suas preferências. Na Astro Rei, que fica a poucos metros do apartamento em que vive, nos Jardins, pede que o pão fresquinho e crocante venha somente com manteiga, sem passar pela chapa. O café pode ser expresso ou coado, mas sempre puro.

De porta em porta. E de carroça!

A paquera entre os paulistanos a as padarias vem lá do Brasil Imperial. Até a segunda metade do século 19, a produção dos pães era uma atividade típica das mulheres.

À época, elas usavam farinhas de milho e de mandioca. Já o apreço pelo trigo chegou com os imigrantes europeus. Foram eles também, que a partir de 1872, deram início aos pequenos comércios na região central da cidade.

As primeiras padarias paulistanas surgiram capitaneadas por portugueses e italianos, que viram na tradição familiar de fazer pão uma oportunidade. Eles assavam e vendiam pães no próprio imóvel em que viviam e usavam carroças para fazer entregas em áreas mais distantes. Eram pães de fermentação natural, enormes, daqueles para serem consumidos ao longo de vários dias.

Algumas das padarias abertas no período resistiram ao tempo e se tornaram patrimônio da cidade. É o caso da Santa Tereza, a mais antiga padaria paulistana em funcionamento, que foi fundada em 1872, e da Padaria 14 de Julho, iniciada pelo italiano Rafaelli Franciulli, mecânico de profissão.

"A intenção do meu avô era abrir uma oficina, mas São Paulo tinha poucos carros na época", conta Alexandre Franciulli, hoje à frente do negócio.

AS CENTENÁRIAS

  • Santa Tereza (1872)

    A mais antiga padaria em funcionamento da cidade ocupa um sobrado atrás da Catedral da Sé e foi aberta ainda no Brasil Imperial pelas famílias Teixeira e Vaz, de imigrantes portugueses. Mudou de endereço (Praça João Mendes, 150, Sé) e de proprietários, mas duas receitas se mantêm há mais de um século como ícones do lugar: a enorme coxa-creme e a canja. O piso superior, lindo e preservado, é uma viagem ao passado e funciona como restaurante.

  • Padaria Italianinha (1896)

    Já se chamou Lucânia e funcionou na Rua do Glicério. Pertence à família Franciulli, também à frente da Padaria 14 de Julho. A fachada renovada (Rua Rui Barbosa, 121, Bela Vista) há quatro anos remete à Toscana. Vende uma infinidade de antepastos, massas frescas e secas, vinhos... O forno, ainda mais antigo que a loja, assa diariamente pães recheados e filão (a baguete italiana), entre outras delícias.

  • Padaria 14 de Julho (1897)

    Alexandre Franciulli nasceu no imóvel (Rua Quatorze de Julho, 92, Bela Vista) em que funciona a padaria fundada pelo avô, o italiano Rafaelli Franciulli. No passado, saía aos montes o pão italiano tamanho-família, de cerca de 4 quilos. "As famílias diminuíram e comprar pão todo dia ficou mais fácil", conta. Hoje, ele assa até um minipão italiano sob medida para dois. Dois destaques: a variada vitrine de antepastos e a porchetta vendida por quilo.

  • Padaria Carillo (1912)

    Na época da inauguração, o italiano Paschoal Carillo vendia seus pães pela cidade numa charrete. A entrega segue forte até hoje nesta padaria da região da Mooca (Rua Demétrio Ribeiro, 29, Cidade Mãe do Céu) comandada por Guilherme e Gabriel Carillo, bisnetos do fundador. Por ali, fazem sucesso filões e pães recheados, como que leva torresmo. O sistema da caderneta de papel ainda funciona para alguns fregueses longevos.

  • São Domingos (1913)

    No fim dos anos 60, à época da construção do Minhocão, artistas, políticos e outros fregueses somaram forças para barrar a desapropriação do imóvel (Rua São Domingos, 330, Bela Vista). Deu certo e o projeto do Elevado ganhou outra curva. É comandada pela quarta geração de Domingos Albanese, italiano da Calábria que chegou à capital no fim do século 19. Faz antepastos, cannoli... É de lá também que saem muitos pães de linguiça e de provolone servidos em diversos restaurantes da cidade.

  • Padaria Lisboa (1913)

    Aberta por Joaquim Martins e Alfredo Martins, filhos de imigrantes portugueses, a padaria da Zona Leste (Praça Silvio Romero, 112, Tatuapé) acompanhou as transformações da cidade, inclusive no ambiente: nunca trocou de endereço, mas foram várias as reformas desde a abertura. Tem mesinhas para refeições, serve café, almoço, conta com uma extensa lista de sanduíches na chapa e pizzas. A origem portuguesa é lembrada na vitrine, em doces como quindins e pasteis de nata.

  • Basilicata (1914)

    Aberta pelo imigrante Filippo Ponzio, a casa está sob o comando da quarta geração do italiano. Em 2017, o imóvel foi ampliado, ganhando uma área de café, com mesinhas, e restaurante (Rua Treze de Maio, 596, Bela Vista). O pão italiano redondo e o filão reinam na vitrine do lugar, que é um playground de gente grande: encontram-se uma grande variedade de queijos e embutidos, cannoli, sfogliatella, crostata e outros doces, bebidas e muitos ingredientes importados.

18 milhões de pães por dia em 5.200 padocas

Pouco mais de um século depois, a cidade de São Paulo tem aproximadamente 5.200 padocas e o pão preferido é o francês. São assados 18 milhões deles todos os dias e o número de padeiros em atividade passa de 15 mil, segundo o Sindicato e Associação da Industria de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sampapão).

Delcimar Gonçalves Aquino, de 35 anos, é um deles. Mineiro de Montes Claros, deixou o trabalho em uma fazenda para seguir o caminho dos primos. "Meu sonho era ser padeiro como eles". Na primeira padaria paulistana em que trabalhou, aos 19 anos, era lavador de pratos. Atualmente, comanda a equipe de padeiros na Big Bread Prime, no Tatuapé, onde chega às 5 horas para despachar as primeiras fornadas de pão.

Enquanto a brigada cuida do pãozinho francês, mais simples de fazer segundo Aquino, ele se dedica às receitas elaboradas, que são um chamariz das padarias hoje em dia. Faz bauru, de presunto e queijo, ciabattas, brioches, catarinas e costelas de adão — tudo bem recheado.

Quando sobra um tempinho e está inspirado, inventa outras delícias. "Tenho dois orgulhos: meu caderninho de receitas e os elogios dos clientes que os atendentes trazem até mim", diz.

Um pouco de tudo a qualquer hora

Na década de 1990, o mercado das padocas paulistanas deu uma sacudida e tanto. De modinha em modinha, muitas padarias passaram a ampliar o seu mix de produtos e serviços, o que deu origem ao modelo das superpadarias, mais tarde replicado Brasil afora.

Neste universo cabe de tudo um pouco: café da manhã e almoço por quilo, café da tarde, happy hour, pizza, balcão de comida japonesa, jantar, bufê de sopa e até venda de vinhos e itens importados.

A rede Dona Deôla foi inaugurada em 1996 por Vera Helena Mirandez e seus irmãos em um imóvel na Avenida Pompeia, na Zona Oeste da cidade — o mesmo em que eles cresceram e a avó Deolinda manteve uma padaria no passado. Um ano depois, lançou o bufê de café da manhã. "Foi um acontecimento, as pessoas cruzavam a cidade para vir aqui", lembra Vera. Comandas eletrônicas, catracas de controle de acesso e funcionamento 24 horas também faziam parte das novidades da época.

O que não muda, na opinião de Vera, é a tradição que os paulistanos têm de passar um tempo na padaria. "As pessoas vêm com a família. A gente acompanha as crianças crescerem. Já presenciei de tudo, de casamento a situações que acabaram na delegacia".

A vida acontece também nas padarias".

A PADROEIRA

A imagem de Santa Isabel está em muitas cozinhas e salões das padarias paulistanas. Nascida em Portugal, Isabel de Aragão (1271-1336) foi mulher de Dom Dinis, rei de Portugal, e foi canonizada pela Igreja Católica, em 1625, por sua generosidade com os mais pobres. Certa vez, para não ser repreendida pelo marido que desaprovava suas doações, ela teria escondido pães junto às dobras do vestido. O rei, então, exigiu ver e foi surpreendido por rosas lindas e perfumadas. Após a morte do marido, a Rainha Santa doou os bens pessoais e passou a viver como religiosa em um convento.

A fornada das artesanais

De uns tempos para cá, as superpadarias e as padarias tradicionais, que nunca saíram de cena e mantêm seu charme e público cativo, passaram a dividir cena com endereços que têm um novo perfil. Eles são menores, muitos sequer contam com mesas para consumo no local, e têm como principal atrativo os pães de longa fermentação natural. Estamos falando das padocas artesanais.

A variedade de produtos nesses endereços é infinitamente menor, alguns pães têm dia e horário certo para sair e existem estabelecimentos que trabalham só como lojinha, vendendo seus pães no estilo pegar para levar ou por entrega. "Acho que o interesse por uma alimentação mais saudável foi um incentivo e tanto para que as padarias artesanais decolassem", diz Iza Tavares.

Formada em gastronomia pela Anhembi Morumbi, ela se apaixonou pela panificação e começou a vender seus pães on-line em 2016. A inauguração da padoca com salão na Vila Madalena deu-se em janeiro de 2020. "Por conta da pandemia, o serviço de mesas durou pouco tempo, mas foi o suficiente para percebermos como tem demanda".

Tomar café na rua, em família ou com amigos, é um hábito muito paulistano".

Eleja as suas padarias favoritas

É para valorizar a cultura, a história e os personagens das queridas padocas que Nossa, a plataforma de lifestyle do UOL, apresenta o concurso Padocaria SP.

Por meio de voto popular e de um júri composto por especialistas, o projeto vai eleger os melhores do ramo em 13 categorias: pão na chapa, sanduba, chapeiro, serviços de frios, doce, cafezinho, pãozinho e melhor padaria.

Fique de olho e participe da primeira etapa do projeto com o voto na sua padaria preferida. A votação é aberta ao público e acontecerá de 7 a 16 de outubro no site Padocaria SP.

Na segunda fase, de 21 a 30 de outubro, um júri de especialistas e o público vota mais uma vez entre os 25 finalistas, sendo cinco de cada região: Zona Norte, Zona Leste, Zona Oeste, Zona Sul e Centro. Os vencedores serão conhecidos no grande evento de premiação que será realizado no dia 9 de novembro.

Keiny Andrade/UOL

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