PANTANAL EM CHAMAS

A luta para salvar das cinzas a natureza e o turismo, paralisado pela pandemia e ameaçado pelo fogo

Eduardo Vessoni Colaboração para Nossa

"Estava tudo tranquilo, mas a coisa esquentou de novo".

A fala exausta e quase sem forças que chega via mensagem de áudio é a prova de que André Thuronyi é mais um dos profissionais e voluntários que não têm medido esforços para combater o pior incêndio dos últimos anos no Pantanal, no Centro-Oeste do Brasil.

Diretor do Araras EcoLodge, na zona rural de Poconé, Thuronyi começa o dia ainda de madrugada com o objetivo de proteger a reserva de quase 3 mil hectares que administra, cujos limites já começam a ver a chegada de dois fortes incêndios.

Em plena alta temporada, quando a aproximação de animais selvagens em busca de água atrai milhares de turistas do mundo todo, o Pantanal arde em fogo. Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os satélites já detectaram mais de 25 mil focos de queimadas só no Mato Grosso.

TEMPORADA PERDIDA

Não bastassem os efeitos devastadores da pandemia de coronavírus que paralisou o setor turístico desde março, a região é atingida agora pelo que já se considera o incêndio de maior alcance desse bioma, entre o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul.

"Só estamos aguardando o fogo chegar para entrar no combate", descreve Ailton Lara, de 40 anos, administrador da Pousada Jaguar Camp, em Porto Jofre.

Localizada no Pantanal Norte, a 8 quilômetros do Parque Estadual Encontro das Águas, no Mato Grosso, sua propriedade virou uma espécie de ilha isolada em meio à destruição. "Tudo já foi queimado ao redor da pousada. Estamos aguardando a resiliência da natureza para poder trabalhar", explica Lara.

Seu estabelecimento, que com a pandemia já tinha perdido cerca de 99% dos turistas, é um dos mais vulneráveis da região, devido à proximidade com a Transpantaneira (MT-060) e a vegetação densa do entorno.

"Esta temporada já está perdida", lamenta.

ÍCONES EM CHAMAS

"A fumaça está insuportável na região".

A descrição vem de outro empresário, Ivan Freitas da Costa, cuja pousada fica às margens da Transpantaneira, estrada ícone que serve de portal para o Pantanal mato-grossense e um dos pontos mais afetados pelas queimadas.

Com cerca de 140 quilômetros de terra batida, entre Poconé e a localidade de Porto Jofre, a estrada é conhecida pelas 123 pontes que cruzam áreas alagadas e lotadas de animais como capivaras e jacarés, das quais 83 são de madeira.

"Quatro pontes já foram totalmente destruídas pelo fogo", explica Ivan em depoimento a Nossa.

Por sorte, se é que a palavra é adequada para descrever o momento, a temporada sem chuvas permite que automóveis desviem por áreas secas sob aquelas construções que viraram um atrativo turístico único.

Em tempos de incêndio sem trégua, a região onde fica o Hotel Pantanal Norte, propriedade do pai de Ivan (o pantaneiro Jamil Rodrigues da Costa), tem servido também de refúgio seguro para atracar embarcações que começam a ver o fogo chegar em outras localidades.

Para Ivan, seus negócios foram mais afetados pela pandemia do que pelo fogo, já que uma das temporadas mais importantes para o turismo local é o da pesca, que costuma ir de fevereiro a setembro.

ANIMAIS EM RISCO

Outra das experiências mais procuradas na região são os safáris de observação de vida selvagem, oferecidos em hotéis isolados, cujo melhor ponto para ver onças são os rios de curvas sinuosas do Parque Estadual Encontro das Águas, na região de Poconé e Barão de Melgaço, a 100 quilômetros de Cuiabá.

Ainda parece cedo para fazer a contabilidade dos estragos causados pelo fogo. Mas, em tempos de normalidade, os turistas são surpreendidos com uma grande quantidade de jacarés, ariranhas, capivaras e tuiuiús, a ave símbolo do Pantanal.

"Este ano não teve observação de onças e nem vai ter", lamenta o empresário, em referência a outro momento de grande procura na região, quando os felinos são facilmente avistados em busca de água, entre agosto e novembro.

Não vai ter onça para ver, mas o fogo é a maior ameaça dessa temporada. Como conta Ivan, da sua propriedade é possível ver, várias vezes ao dia, "os aviões agrícolas do ICMBio jogando águas para combater o incêndio".

REFÚGIO DAS ONÇAS

Mesmo em meio ao caos e ao desespero de ver a fauna agonizando diante de seus olhos, Ailton Lara ainda consegue ser resiliente, assim como a natureza que esse cuiabano tem na porta de casa.

Mais do que garantir a segurança de seu pequeno estabelecimento de oito suítes, Lara luta para proteger os poucos locais seguros que sobraram nas proximidades.

"A Ilha Alan Rabinowitz é o único refúgio das onças-pintadas da região por conta da abundância de rios. Ao redor, está tudo devastado", conta a Nossa.

Essa ilha verde de florestas e bancos de areia, abraçada pelos rios Três Irmãos e São Lourenço, resiste entre o solo queimado dos arredores e sob um ameaçador céu alaranjado que nada lembra os cenográficos finais de tarde pantaneiros.

Com 340 m² de extensão, a ilha foi batizada em homenagem ao conservacionista estadunidense Alan Rabinowitz, morto em 2018 e conhecido por seus trabalhos de proteção de felinos.

"É desesperador acompanhar esse fogo descontrolado. Eu nunca tinha visto isso antes", lembra Lara, empresário que está há 20 anos no Pantanal.

TODOS A POSTOS

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente informou que no último sábado, 5 de setembro, até trilheiros se dispuseram a ajudar no resgate de animais atingidos pelos incêndios.

Segundo a SEMA-MT, um grupo de 12 motociclistas rodaram cerca de 60 quilômetros próximos à fazenda Rosário, na cidade de Poconé, com o objetivo de mapear a região. Foram encontrados animais feridos, como quati e lontra, e "cerca de 20 jacarés enterrados na lama".

"A partir dos pontos mapeados, a força-tarefa iniciou no domingo, 6 de setembro, nova distribuição de alimentos e de água, acompanhada por especialistas", informou a secretaria.

Uma das ações de ajuda que nasceram durante os incêndios no Pantanal, que já duram cerca de dois meses, é a Bicho Vivo.

Neste projeto encabeçado pelo Programa Bichos do Pantanal, realizado pelo Instituto Sustentar de Responsabilidade Socioambiental e com patrocínio da Petrobras, o objetivo é arrecadar fundos para a aquisição de insumos médicos e alimentos para a fauna atingida pelo fogo, em setores como Porto Estrela e Cáceres, no Pantanal Norte.

O programa pretende levantar R$ 150 mil que serão destinados também para a construção de um local para receber os bichos, tratá-los e fazer a soltura posteriormente. A campanha está aberta para doação desde o último dia 10 no site do Instituto Sustentar.

A NATUREZA SOFRE

Entre as cenas que mais chocaram o ecólogo Douglas Trent, um dos profissionais do Programa Bichos do Pantanal, foi ver onças com as patas completamente queimadas, tamanduás com os pelos em chamas e animais como capivaras sem opção de alimento por conta do fogo na mata.

"Isso me deixa sem palavras, toca o coração da gente", descreve esse estadunidense do Novo México, no Brasil desde 1980.

Embora nos últimos anos tenha ocorrido aumento na população de animais no Pantanal, como onças e araras-azuis, Trent alerta que o desmatamento ainda é o principal inimigo da região, cuja perda já é de 25%.

"A natureza tem uma forte capacidade de se regenerar, mas se a região continuar secando, em breve não vai ter mais Pantanal. E se virar deserto, não tem mais turismo", prevê esse especialista em ciência ambiental e em projetos ecoturísticos.

Assim como ele mesmo lembra, via dados da ONG WWF-Brasil, o turismo de natureza no destino gera cerca de 7 milhões de dólares por ano, sobretudo por conta da popularidade da região entre turistas estrangeiros.

"A pandemia e os incêndios trouxeram um desastre econômico para todos. As pousadas não têm clientes", explica Trent.

Além dos custos mais elevados da viagem, o ecólogo acredita que a ausência de brasileiros se dá devido ao pouco interesse dos turistas nacionais pela região. "Há uma desconexão quase total com a natureza. Os brasileiros querem ir mais para a Disney e para ca Europa do que virem para o Pantanal", analisa.

Outro projeto que tem atuado sem descanso durante as queimadas é a Aecopan (Associação Civil de Ecoturismo no Pantanal Norte), formada por guias, pousadeiros e operadores de turismo.

Nas últimas semanas, essa brigada voluntária tem feito limpeza de áreas atingidas, organização de equipamentos e execução dos aceiros, como são conhecidas as faixas criadas pelo homem, ao redor da vegetação, a fim de bloquear a propagação do fogo.

TURISMO DE EMERGÊNCIA

Conhecido pelas propostas inovadoras no turismo nacional e uma das referências em ecoturismo na região, o Sesc tem assumido um papel que vai além da acessibilidade e da inclusão social em sua unidade pantaneira.

O aeródromo próximo ao Hotel Sesc Porto Cercado, em um distrito de Poconé, tornou-se a base do Ciman-MT (Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional), operação conhecida como Pantanal II e que reúne as Forças Armadas do Brasil, bombeiros e profissionais do Ibama e do ICMBio.

De acordo com números da Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, atualmente mais de 130 pessoas atuam no combate aos incêndios, entre profissionais do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, funcionários do Sesc Pantanal e da Universidade Federal do Mato Grosso.

Em entrevista por telefone, Christiane Caetano, superintendente do Sesc às margens do rio Cuiabá, a unidade tem dado apoio às equipes com hospedagem, alimentação e logística na região do Parque Sesc Baía das Pedras, uma área de 4.200 hectares, a 8 quilômetros do hotel.

"É um ciclo de ações integradas na preservação do meio ambiente, do homem pantaneiro e da sua cultura. É uma responsabilidade nossa nos juntarmos a todos a esses atores com um objetivo único", explica.

Na contramão da crise econômica anterior ao coronavírus, as unidades hoteleiras do Sesc no Pantanal vinham registrando uma taxa de ocupação de 75% até serem fechadas por conta da pandemia, em 25 de março.

Apesar da hotelaria na região estar aberta desde julho, o Hotel Sesc Porto Cercado tem reabertura programada para 25 de setembro com 50% de sua capacidade. "Mesmo durante a crise, a procura tem sido muito alta", avisa Christiane.

Moradora de Cuiabá, essa carioca lembra que está "há dias sem poder abrir a janela de casa por conta de tanta fumaça".

Depois de 21 dias seguidos no Pantanal, acompanhando os trabalhos de combate aos incêndios, Christiane diz que uma das imagens que mais marcaram foram os sobrevoos de monitoramento na região. "Parecia um grande exército marchando sem trégua, em uma linha de 12 quilômetros de fogo. Toda a área está carbonizada", descreve.

Para ela, o maior incêndio dos últimos tempos no Pantanal é uma junção de diversos fatores, como a seca das temporadas anteriores e as altas temperaturas. "É um fogo muito forte que passa queimando absolutamente tudo. A umidade do ar chegou a 12%", completa.

Já o hoteleiro Ailton Lara acredita que, além da ação humana, os incêndios tomaram essa proporção por conta do acúmulo de biomassa ao longo dos anos. "Quando chega o fogo, ele vem consumindo tudo. Por isso é preciso olhar a natureza e saber a época adequada para fazer o seu manejo".

"O maior problema do Pantanal é que não choveu na época da chuva, que costuma vir com força no final de novembro. É uma época de chuva sem chuva e eu nunca vi isso antes", analisa o ecólogo Douglas Trent.

O PANTANAL

Menor bioma do Brasil e uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta, o Pantanal fica nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estendendo-se até a Bolívia e o Paraguai, onde é conhecido como chaco.

Com cerca de 210 mil km², a região tem apenas 4,4% de área protegida com unidades de conservação, segundo dados do ICMBio, e é dividida em Pantanal Sul (onde ficam destinos como Aquidauana e Corumbá, ambos no Mato Grosso do Sul) e Pantanal Norte (Cáceres, Poconé e Barão de Melgaço, no Mato Grosso).

Influenciado diretamente pela Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, esse bioma é endereço de 463 espécies de aves, 132 espécies de mamíferos, 263 de peixes e outras 113 espécies de répteis.

GALERIA DA NATUREZA

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