FALA, CAPITÃO!

O futuro do turismo e os impactos da pandemia na visão de Ricardo Freire, pioneiro de blogs de viagem no país

Adriana Setti Colaboração para Nossa Leo Aversa

No tempo confinado em seu apartamento em São Paulo, o blogueiro Ricardo Freire olhou com nostalgia para as estatísticas do Google Analytics da era pré-pandemia.

Em janeiro, pouco antes do coronavírus fechar fronteiras e congelar o turismo mundial, seu site teve quase 4 milhões de page views — bem distante dos números que computou no auge da quarentena. "Viagem virou algo politicamente incorreto nesse período", diz o ex-publicitário, considerado o fundador (e o papa) dos blogs sobre o assunto no Brasil.

Há mais de 16 anos no timão da sua boia, ícone absoluto e "capitão" do Viaje na Viagem, o turista profissional arrasta um séquito de seguidores fidelíssimos desde os tempos analógicos (quando escrevia para revistas como Viagem e Turismo e VIP), que chegaram a formar uma comunidade e se encontram além do mundo virtual.

Pioneiro na internet, ele se mantém alheio aos modismos, usando as redes sociais com moderação e nadando na contramão dos influencers, mantendo o blog como seu principal veículo de comunicação. Sempre antenado às tendências do universo do viajante, Ricardo Freire conversou com Nossa sobre o futuro do turismo e os impactos da pandemia na vida de quem ama estar com o pé na estrada.

Leo Aversa

VIAJANTES DA ERA COVID-19

Você criou uma classificação para os viajantes na era do coronavírus. Poderia falar um pouco sobre cada "espécie"?
Classifico os viajantes da pandemia em três grandes grupos. O primeiro é o dos "despachados", formado pelos que estão dispostos a viajar. Já o segundo, é o dos "ressabiados", que têm vontade de viajar, mas só irão quando tiverem alguma segurança de que não vão se contagiar e nem expandir o contágio. O terceiro grupo é o dos "abstinentes", que devem riscar o assunto viagem da pauta até uma vacina ser descoberta ou o vírus parar de circular.

Quem são esses despachados?
Eles podem ser subdivididos em três grupos. O primeiro é o dos "desconfinados", formado pelas pessoas que já estão nas ruas e aderiram aos novos protocolos. São os que precisam sair para trabalhar, que já estão aproveitando a reabertura da economia e perderam o medo de ir a restaurantes. Ou seja, estão avançadas na "fisioterapia social", que é a fase de reaprender a fazer as coisas. Para essas pessoas, viajar seria apenas um passo a mais.

Um segundo subgrupo é o dos "fugitivos". Eles morrem de medo da pandemia, ficaram em casa e são supercaxias. Por outro lado, enxergam a viagem como uma fuga temporária da quarentena e querem identificar um lugar seguro aonde ir. Eles também tendem a aderir aos protocolos, a não ser que achem que ficaram tão confinados, ou que estão tão no meio do mato, que podem chutar o pau da barraca.

No terceiro subgrupo de despachados temos os que não estão nem aí para a pandemia — os "tônemaíners".

Os 'tônemaíners' negam a pandemia, acham as medidas exageradas e acreditam que estão imunes ao contágio. Essas pessoas, como sabemos, se inspiram em alguns modelos bem conhecidos para seguirem esta linha de pensamento"

Quem vai começar a viajar antes?
Os "tônemaíners" vão começar a viajar de avião a turismo antes de todo mundo, uma vez que voar é a maior barreira para os ressabiados e os fugitivos, que ainda querem ter certeza de que os novos protocolos dos aviões funcionam.

Trata-se de uma espécie perigosa, porque não costuma ser receptiva aos novos protocolos. Meu maior medo, como fugitivo, seria ir para uma pousada no meio do mato, ou uma praia deserta, e topar com uma festa de "tônemaíners". Porque, afinal de contas, eles precisam de vida social e querem viajar em turma para fabricar esse agito nos lugares aonde vão.

No momento em que as pessoas se sentirem seguras, muita gente vai marcar viagem ao mesmo tempo e, se a gente tiver verão, será uma temporada fortíssima, porque todo mundo vai querer se vingar dessa quarentena.

Ricardo Freire

Getty Images/Westend61 Getty Images/Westend61

A PANDEMIA E O TURISMO

Você é otimista sobre o desfecho desta pandemia no Brasil?
Estou apegado a duas crenças. Dos otimistas, pego a ideia de que o pior já passou. Dos pessimistas, assimilo que isso não vai passar nunca e que sempre vamos ter que nos proteger de alguma forma. Não dá pra acreditar em mágica e achar que até janeiro tudo estará como antes.

Até lá, a gente até deve conseguir viajar para onde quiser, mas sempre tomando cuidado. Não haverá grandes festas no Réveillon e nem carnaval, mas um dia isso vai voltar. Este é um ano para reaprender, para fazermos "fisioterapia social".

Você disse que "caso os provedores de experiências turísticas consigam passar a mensagem certa, devem adquirir um novo papel". Que papel é esse?
O de provedor de experiência segura de desconfinamento, que é uma nova faceta do turismo. Quando os restaurantes do Rio de Janeiro começaram a abrir, fui ver o vídeo de um sobre todos os procedimentos que vão adotar. Era uma coisa bem técnica, mas muito bonita. E me deu vontade de ir!

Isso é mais do que um jantar, é uma noite segura fora da minha casa, o que tem mais valor do que um simples jantar tinha antigamente. Nesta fase de desconfinamento gradual, os lugares que conseguirem passar essa mensagem vão oferecer algo muito valioso.

Você acredita em um novo normal para o turismo, com mudanças profundas e definitivas?
Acho até que algumas pessoas vão se transformar neste período, ficando introspectivas ou antissociais e pensando duas vezes antes de fazer um turismo mais predatório. Mas, no geral, as mudanças vão depender principalmente da infraestrutura, das restrições e da economia. Se as companhias aéreas low cost desaparecerem, ou se, no Brasil, deixarmos de ter voos para todos os lugares, isso é o que vai impactar as viagens.

Esse ser evoluído pós pandemia será uma minoria. Comparo ao vegetarianismo e ao veganismo: cada vez mais gente adere, mas não vai chegar a ser mainstream. Assim que puder, o ser humaninho vai voltar a ser igualzinho a o que era"

Talvez, destinos como Barcelona ou Veneza se tornem menos lotados pela redução de voos low cost, ou pela dificuldade que as pessoas terão de ultrapassar fronteiras por um tempo. Também haverá o problema dos seguros de saúde, que não cobrem coronavírus e teriam que mudar essa política para que as pessoas viajem.

Arquivo pessoal

Qual será o papel do blogueiro de viagem daqui pra frente?

Acho que o meu papel já é diferente do que virou o blogueiro de viagem hoje. No início, mostrávamos os perrengues que deveriam ser evitados, para que as pessoas pudessem aproveitar os lugares. Daí surgiu o YouTube e muita gente que nunca tinha viajado começou a passar esses perrengues ao vivo.

Influencer, por definição, é uma pessoa que não entende do que está fazendo e está descobrindo no processo. Talvez por isso, muita gente se identifique com eles e tudo bem, é um nicho.

Depois veio o Instagram, que é justamente o contrário: não tem perrengue nenhum . É o "unreality" show"

Com tudo isso, o papel do Viaje na Viagem passou ser servir de filtro. As pessoas nos consultam para confirmar informações ou saber mais sobre os lugares. Deixei de apontar aonde elas deveriam ir e passei a procurar destinos que estão famosos nas redes sociais para dar informações sobre eles. Quando tudo isso passar, pretendo seguir na mesma linha.

Getty Images/Westend61 Getty Images/Westend61

BEM-VINDO AO BRASIL

Durante esse período, você falou sobre uma nova desigualdade social entre os viajantes. Poderia explicar essa teoria?
Sempre tivemos o viajante com possibilidade de voar na executiva e ficar nos melhores hotéis de um lado e, de outro, o viajante duro que viajava como podia. A palavra mochilão, que virou sinônimo de viagem barata, surgiu para designar viagens intermináveis, na qual você punha o pé na estrada e só voltava quando o dinheiro acabava.

Pouca gente se dava conta, mas quem dispõe de tempo para viajar é mais rico do que quem tem dinheiro. Se você não tem uma data para voltar, é um viajante mais afortunado do aquele que tem milhões, mas precisa estar em casa daqui a quatro dias"

Com a pandemia, a desigualdade é outra. De um lado, muita gente que teve redução de receita, perdeu o emprego e parou o seu negócio. Do outro, pessoas de classe média para cima que não só mantiveram o trabalho, como passaram meses sem fazer gastos sociais; não saíram, não foram a shows, não viajaram, não tomaram vinho em restaurantes, fizeram seus gim-tônicas em casa...

Esses ganharam uma poupança inesperada que pode ser transformada em viagem a qualquer momento, assim que os lugares abrirem e elas se sentirem seguras para viajar. Por isso, serão os viajantes mais cobiçados na reabertura.

E como fica a vida do viajante low cost de sempre?
Com o turismo local e regional. Ficamos sonhando com o longe durante muito tempo e, no Brasil, esquecemos de olhar para o que temos ao redor. Brasileiros de todas as classes têm um enorme déficit de viagem pelo Brasil. Então, enquanto não pudermos circular mais livremente entre fronteiras, vamos descobrir tesouros perto de casa.

O Brasil está preparado para absorver esse boom do turismo local?
Sim! Só temos problemas de excesso de turismo na alta temporada e nos feriados, principalmente no Carnaval e no Réveillon. Quem viajava fora das férias até agora não pensava no Brasil. Isso é um grande erro porque, além de muitos lugares serem bem melhores sem tanta gente, o clima também pode ser mais favorável na baixa temporada.

Santa Catarina, por exemplo, fica melhor em março e abril, quando chove menos. Nessa época, só os argentinos estão por lá, porque eles são espertos. Em qualquer mês há um lugar no Brasil a ponto de bala para ser visitado com melhores condições que ofereceria no período de férias.

Arquivo pessoal

Por que viajamos tão pouco pelo Brasil?

Desde que o dólar bateu em R$ 1,57 na "bolsa Disney" [risos] e as viagens para o exterior se tornaram mais democráticas, alimentou-se a ideia de que viajar pelo Brasil era um prêmio de consolação, ou que era mais caro visitar a Bahia do que a Flórida. Isso é mentira.

Na Disney, só a entrada nos parques com a família vai sair US$ 400, enquanto um passeio em Porto Seguro custa R$ 60 por pessoa. O sujeito come um pedaço de pizza na rua volta dizendo que Nova York é mais barato que Maceió, onde passou as férias comendo moqueca de camarão.

Getty Images/Westend61 Getty Images/Westend61

DESAFIOS PARA O (NOVO) TURISMO

Como o Brasil vai conquistar o viajante internacional depois do coronavírus?
Ficando barato, como no último boom de turismo estrangeiro, entre 2001 e 2004, período de alta do dólar. Daí veio a crise na Europa e este cenário mudou. Entraram as companhias low cost, as reservas de hotel pela internet e nós ainda estávamos fora desse mercado.

Com a Copa, ganhamos muitos turistas argentinos, que adoram o Brasil e só enxergam rivalidade no futebol. Em termos de turismo, nossa China é a Argentina, mesmo sem darmos nenhuma moleza a eles, como isenção de impostos ou menus em espanhol. Ficar sem esse mercado será um problema. Então precisamos primeiro reconquistar os argentinos, que têm que voltar a achar o Brasil seguro de novo.

Para o resto do mundo, antes mesmo da covid-19 já tínhamos um problemaço, que é a imagem antiecológica do Brasil. Na avaliação da Organização Mundial do Turismo no fórum de Davos, o Brasil aparece como o primeiro país do mundo em atrativos naturais. Mas, em um momento em que temos um governo famoso por destruir tudo isso, como vamos atrair um novo público?"

Precisaríamos aproveitar esse hiato do turismo internacional para pensar em um plano para trazer turistas estrangeiros de volta. Há muito por fazer, mas acho que, com este governo, não será possível.

Hotel ou Airbnb? O que faz mais sentido daqui pra frente?
O que faz mais sentido é o que deixa você confortável com seu nível de paranoia. O psicológico é o mais importante de tudo. Pessoalmente, acredito nas evidências de que o contato por superfície seja o menos importante, desde higienizarmos as mãos e tal. Então, não tenho medo de hotel. Mas acredito que muita gente prefira limpar o seu aluguel de temporada para sentir-se mais tranquilo. O que manda é o nível de segurança pessoal de cada um.

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