O homem das cavernas

Seu Ramiro é o guardião do Terra Ronca, que abriga surpreendente conjunto de monumentos subterrâneos em Goiás

Eduardo Vessoni Colaboração para Nossa Márcio Cabral

Toda vez que Seu Ramiro chega no trabalho, ajoelha-se diante de um altar de cores desbotadas e reza pela família e pela segurança de quem vai entrar no seu escritório de rochas.

Com quase 63 anos, Ramiro Hilário dos Santos é o guardião de um dos conjuntos espeleológicos mais importantes da América do Sul e, desde os 12, explora o interior de cavernas que se escondem, literalmente, no quintal de casa.

Aliás, não é nenhum exagero dizer que ele é um caso vivo de "homem das cavernas". Foi na Terra Ronca I, uma das suas preferidas, que Ramiro foi batizado, casou-se em 1980 e voltou a batizar os filhos que nasceriam nos anos seguintes.

É tanta caverna na vida dele que até um peixe endêmico de uma delas tem nome científico em homenagem a seu Ramiro: o Ituglanis ramiroi, mais conhecido como Bagrinho-De-Caverna.

Desde que começou a buscar cavernas na infância, a rotina dele se resume a andar por salões imponentes decorados com formações naturais únicas, cruzar rios interiores com água até a cintura e surpreender visitantes com efeitos visuais criados com a luz da lanterna de carbureto sobre o capacete.

Era arriscado, mas eu comecei a gostar e fui namorando a própria natureza"

Márcio Cabral
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Terra Ronca

O Parque Estadual Terra Ronca fica na zona rural de São Domingos, no nordeste de Goiás, e é uma área de 57 mil hectares com um conjunto de cerca de 300 formações cavernícolas de cerca de 600 milhões de anos.

Só das que têm rios internos, seu Ramiro já mapeou 11 cavernas. Sem falar nas outras 150 secas que ele percorre como se estivesse no terreiro de casa.

Endereço cobiçado de especialistas e turistas dispostos a ir além do turismo de massa goiano, o nordeste do estado é o principal conjunto cárstico (tipo de relevo geológico caracterizado pela corrosão das rochas) de todo Centro-Oeste, com formações rasgadas por rios caudalosos que dão tons de aventura a quem visita a região.

Márcio Cabral Márcio Cabral

De acordo com o Cadastro Nacional de Cavernas do Brasil, Goiás é endereço de 843 cavernas. Só para ter uma ideia da potência daquilo tudo, no último mês de abril, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás lançou a campanha "Terra Ronca: no coração do Brasil profundo existe um patrimônio da humanidade", cuja intenção é obter pela Unesco o título de Patrimônio Natural Mundial.

Assim como explica o geógrafo Márcio Cabral, em entrevista a Nossa, Minas Gerais e São Paulo têm a maior concentração de cavernas do Brasil, mas Terra Ronca se destaca pela concentração delas em um só local.

Eduardo Vessoni
Lapa Angélica, caverna de fácil acesso, com 14,1 km de extensão

"Das 10 maiores cavernas do Brasil, três estão em São Domingos, município que possui o maior número de cavernas entre as top 50 do Brasil", explica Cabral, frequentador da região desde os 25 anos e autor da maioria das fotografias desta reportagem.

Entre elas, está a Lapa da Angélica (14,1 km de extensão), uma formação de fácil acesso e com experiências como o impactante Salão dos Espelhos, com um lago interior sob um teto baixo; e o Salão das Cortinas, um espaço com colunas de calcita que se formam com o encontro de estalactites e estalagmites.

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A terra que fala

Entre as histórias que tentam explicar a origem do nome de Terra Ronca, a mais conhecida se refere ao som causado pelos pés de quem caminha por aquele terreno milenar de solo arenoso ou também pelo ronco forte das águas dos rios subterrâneos.

A mais famosa é a gruta Terra Ronca I, conhecida pela boca de 96 metros de altura e 120 de largura, uma das maiores do Brasil, cuja entrada abriga desde 1953 o altar construído pelo pai do seu Ramiro e por um padre da cidade de São Domingos.

"Meu pai trouxe o modelo e a fé da Bahia", explica Ramiro com sua inconfundível voz sem pressa de quem nasceu do outro lado da estrada de terra, próximo à entrada da caverna.

O limite com a Bahia fica a poucos quilômetros do Terra Ronca, e era para lá que a população religiosa se dirigia para ir ao Santuário do Bom Jesus da Lapa, a gruta-capela que recebe, anualmente, uma das maiores e mais antigas romarias do Brasil.

Mas para evitar o deslocamento da população da região, o pai de Ramiro — Antônio, um baiano de Correntina — comprou terras que abrigavam cavernas para que a população não tivesse que viajar os cerca de 420 km até o santuário da vizinha Bahia.

Até hoje, a Terra Ronca I é palco da Romaria do Bom Jesus que acontece sempre na primeira semana de agosto — porém cancelada pelo segundo ano consecutivo, devido à pandemia de coronavírus.

Meu pai criou o turismo religioso, e eu criei o turismo de aventura nas cavernas", orgulha-se Ramiro.

Márcio Cabral
Salão de entrada da Terra Ronca I, o "quintal" de Seu Ramiro

A Terra Ronca I impressiona pelo imenso salão logo na entrada, decorado por imponentes formações como estalactites e estalagmites, cuja caminhada exige travessias do Rio Lapa.

"A entrada é bem ampla e de fácil acesso. Fica bem próxima também da saída, do outro lado, a cerca de 700 metros", conta Ramiro.

Como explica o geógrafo Márcio Cabral, a diferença entre caverna e gruta é que embora ambas sejam cavidades, a primeira só tem uma entrada (por onde também se deve sair), enquanto que a gruta se caracteriza pela presença de entrada e saída, na outra extremidade.

Márcio Cabral
Seu Ramiro ilumina as paredes das cavernas no velho estilo: com luzes de carbureto

Do tempo das cavernas

Assim que o grupo de visitantes cruza a praia de rio que se forma logo na boca da entrada da gruta Lapa da Angélica, onde estalactites pendem do teto, seu Ramiro pede que todos desliguem suas lanternas, se esconde na escuridão silenciosa e dá início a seu show, como ele mesmo define a dança no ar com as luzes do carbureto no Salão das Cortinas.

Para os mais intrépidos, a 4 quilômetros dali, uma cachoeira despenca dentro da caverna, a cinco metros de altura.

No início, eu abria os caminhos na mata com facão e ficava atento aos lugares por onde eu passava para reconhecer o caminho de volta"

Naquela época, lanternas eram um luxo para aquela gente isolada a mais de 600 km da capital Goiânia. Por isso, Ramiro fazia uma tocha com cera de abelha em um pano, em uma espécie de vela improvisada, e ia entrando.

Exceto pelas cordas e corrimãos instalados por ele, atualmente, pouco parece ter mudado em Terra Ronca. Ramiro segue iluminando os caminhos com a luz produzida pelas pedras de carbureto, a única opção de iluminação artificial nas áreas mais escuras.

E mesmo com as facilidades tecnológicas para a exploração e iluminação de cavernas, ele ainda usa essa composição química para fazer funcionar a pequena lanterna presa a seu capacete e aos dos visitantes.

"É uma luz boa e eu não trocaria por pilha. Aqui o teto é alto e ventila muito", justifica seu Ramiro, uma vez que a fumaça do carbureto poderia danificar aquelas delicadas formações.

Márcio Cabral
A caverna São Mateus reúne os principais espeleotemas, além de rio e até cachoeiras

Se Terra Ronca I tem a entrada mais cenográfica, na opinião de Ramiro, a São Mateus é a sua preferida. Trata-se de um conjunto de três cavernas, conhecido por abrigar algumas dos espeleotemas (como são chamadas as formações típicas de cavernas) mais raros do Brasil, como a helictite, uma formação em L que se desenvolve para os lados, desafiando a gravidade.

É a mais impressionante de todas, daquelas que mal se conhece o final dessa caverna de 25 km de extensão.

"Tem tudo o que precisa: colunas, cortinas, estalactites e estalagmites", defende seu Ramiro, em referência aos diferentes tipos de formações.

Tem tudo, inclusive cachoeiras.

Márcio Cabral

Caçador de cavernas

As primeiras expedições informais de Ramiro começaram nas cavernas Terra Ronca I e II, quando ainda era criança. Como ele mesmo explica:

Logo foi chegando mais gente curiosa e fui caçando mais cavernas, desbravando a região para levar mais pessoas"

Ramiro é, praticamente, o descobridor daquelas cavernas, cujas primeiras explorações internas foram feitas por ele, quando nem os próprios moradores locais sabiam onde tudo aquilo ia dar.

"Eu fui gostando do lugar e via que aquilo tinha futuro. Vou ficar aqui até o fim da vida porque esta é a terra da gente", conta Ramiro, cujos filhos Kiko, 35, e William, 38, seguiram os passos firmes do pai e também atuam como guias na região.

O geógrafo Márcio Cabral lembra também que a caverna São Vicente é uma das que mais surpreendem, mas é também a mais perigosa delas, onde visitantes costumam ir só até a entrada.

Com pouco mais de 16 km de desenvolvimento, essa caverna é cheia de cachoeiras internas que só podem ser visitadas com rapel e outras técnicas de avanço vertical. "Não é para qualquer um, por isso é fechada para o turismo", lembra Cabral.

Com o novo plano de manejo espeleológico de Terra Ronca, porém, a São Vicente deve ser aberta para visita pública em breve. Atualmente, apenas cinco em toda a região têm entrada turística permitida.

Márcio Cabral Márcio Cabral

A São Mateus (foto acima) é uma das preferidas de Cabral porque tem uma das variedades de espeleotemas mais ricas em todo o Brasil, endereço do Salão dos 700, onde a lenda diz que comporta até 700 pessoas dentro.

"A entrada dela é do tamanho de uma boca de esgoto e você não dá nada por ela quando começa a entrar. Mas quanto mais você vai entrando, mais linda ela vai ficando" conta Márcio, que já ficou acampado lá dentro por dois (claustrofóbicos) dias para poder explorar os salões mais distantes.

"Na São Mateus, você escuta um barulho de gota de água a 50 metros de distância", descreve.

Márcio Cabral Márcio Cabral

Sobram cavernas e falta interesse

Com um cenário único em todo o Brasil, é de surpreender que Terra Ronca ainda não figure entre os destinos mais visitados do país.

"Atualmente, tem pouco investimento público na região. O governo ainda não consegue enxergar o potencial daqui" descreve Júlia Chaves, empresária nascida em São Domingos, a principal base para quem visita Terra Ronca.

Júlia lembra que, embora seja um hotspot de biodiversidade e Reserva da Biosfera pela Unesco, faltam mais estudos sobre Terra Ronca. "Qualquer pesquisa que se faça na região, serão encontrados dados e espécies novas", diz.

Além de guia, juntamente com o marido, Júlia toca uma pousada e também um hostel, que funciona em um casarão reformado de 1927.

Aliás, Júlia faz questão de avisar que as pousadas dali costumam ter nomes que fazem uma alusão ao clássico "Grande Sertão: Veredas", romance de Guimarães Rosa com trechos em que o autor cita locais como o Rio São Domingos. Terra Ronca já foi também cenário da minissérie homônima de 1985 com Bruna Lombardi e Tony Ramos, gravada em locações como a caverna Angélica.

"São Domingos tem buritis gigantes que crescem no sopé da Serra Geral da Bahia (foto acima), onde nascem rios de águas bem cristalinas. O potencial seria maior se aproveitassem o turismo além das cavernas", analisa o geógrafo Márcio Cabral.

E Seu Ramiro também sabe disso. Durante a entrevista para essa reportagem, ele estava finalizando um anexo em sua casa para hospedar até 40 pessoas.

Só quem já passou uma noite ali sabe o sabor da comida preparada no fogão a lenha pela dedicada esposa Maria Aparecida. O combustível ideal para desbravar com Seu Ramiro as cavernas do Terra Ronca.

BRASILEIRO

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