Os novos caipiras

Eles trocaram a metrópole pela roça para viver da produção artesanal de queijo, cachaça, vegetais e até porcos

Rafael Tonon Colaboração para Nossa

Há uma década, pela primeira vez, o número de pessoas vivendo em cidades ultrapassou o daquelas que moram na zona rural. É um movimento crescente. Até 2050, a Organização das Nações Unidas prevê que sete em cada dez habitantes do mundo viverão em áreas urbanas. Só na última década, cerca de 2 milhões de brasileiros deixaram o campo, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Mas na contramão desse fenômeno global, há gente disposta a trocar o concreto pela roça. Em busca de um estilo de vida mais saudável e conectado com a natureza, tentam combinar as habilidades de quem vive e trabalha em grandes centros com as tradições e o patrimônio cultural rural.

Deixam empregos em grandes empresas e escritórios para se tornarem produtores de cachaças, porcos, queijos e vegetais orgânicos. E usam suas formações qualificadas para administrar os negócios com foco em manejos sustentáveis, mirando em consumidores exigentes, conscientes e conectados com as práticas modernas de alimentação, saúde e produção.

Nos Estados Unidos, onde acontece um comportamento semelhante, eles foram chamados de "rural millennials" (algo como "millennials rurais" em português). Uma onda que começa a ganhar mais força também por aqui. Conheça alguns dos "novos caipiras".

FAÇA VOCÊ MESMO

Yentl Delanhesi e Peèle Lemos

Proprietários da Lano-Alto, fazenda que produz queijos, fermentados, geleias e outros alimentos
Catuçaba (SP)

Depois de uma temporada vivendo nos Estados Unidos, o casal de publicitários Yentl Delanhesi e Peèle Lemos resolveu deixar São Paulo e fincar raízes em Catuçaba, na porção paulista da Serra do Mar. "Pode parecer contraditório, mas os americanos nos fizeram entender muito da origem das coisas através da cultura do 'faça você mesmo'", diz Yentl.

Naquele país, a dupla conheceu hortas e fazendas urbanas. De volta, pareceu lógico se estabelecer na propriedade para onde fugiam todos os fins de semana, a fazenda Lano-Alto, e comandar remotamente a agência de design e comunicação que mantinham na capital.

Em 2014, decidiram compartilhar a experiência — que batizaram de "vivência rural" — em cursos e workshops. Em seguida, começaram também a produzir alimentos, como queijos, iogurtes, embutidos, e diversos tipos de fermentados, como bebidas e picles.

No ano passado, inauguraram na Vila Madalena, em São Paulo, uma loja com café com o mesmo nome da fazenda. A pandemia, porém, exigiu adaptações. Passaram a fornecer somente os alimentos que conseguem entregar na casa das pessoas — como doce de leite, café, fubá, cachaça e queijo.

Aqui na fazenda, cozinhamos nossa própria comida, não precisamos mais do que um par de botas cada um e somos muito mais felizes"

MAIS COZINHEIRO DO QUE NUNCA

Rafael Cardoso

Produtor de porcos e de embutidos artesanais
Silveiras (SP)

Formado em gastronomia, Rafael Cardoso trabalhou em alguns dos mais premiados restaurantes do mundo, entre eles o brasileiro D.O.M., de Alex Atala, e o espanhol Mugaritz. Mas decidiu trocar o seu "estresse, as madrugadas e a tensão constante" para empreender no interior.

Eu queria voltar à terra dos meus ancestrais e me dedicar a algo ligado ao campo, só não sabia ainda o que seria"

A ideia inicial era ter uma pousada em Silveiras, na porção paulista da Serra da Bocaina. Mas a ligação com a gastronomia falou mais alto. Começou comprando alguns porcos caipiras para produzir embutidos (uma paixão antiga) e, então, passou a criar seus próprios animais.

Criou uma marca, a Curiango, e hoje produz bacon, linguiças, copa, chouriço, entre outros embutidos artesanais e naturais. Além disso, passou a se dedicar à pesquisa sobre pecuária suína - principalmente sobre as raças crioulas, como o caruncho e o casco-de-mula - e alimentação rural.

"Me sinto muito mais cozinheiro do que antes", diz ele, que é um entusiasta da vida no campo.

Nossa civilização tomou rumos que agora se mostram insustentáveis. Talvez o estilo de vida caipira possa ser um grande exemplo de como podemos corrigir essa nossa toada"

EU QUERO UMA CASA NO CAMPO

Claudio Ruas e Amana Castelo Branco, o Casal Gastrô

Produtores de queijo artesanal e outros produtos lácteos
Resende Costa (MG)

Há 4 anos, o casal Cláudio Ruas e Amanda Castelo Branco tinha acabado de ter uma filhinha, mas estava insatisfeito com o trabalho e os problemas da cidade grande. Além desses motivos que costumam constar na história de quem decide mudar para o campo, a dupla tinha um outro: a vontade de dar continuidade ao trabalho de suas famílias, que mantinham fazendas.

Trocar nossas carreiras [de advogado e professora de enologia] pela roça podia não parecer uma decisão acertada para as pessoas em geral, mas, para nós, fazia todo sentido"

Foi assim que se mudaram para Resende Costa, em Minas Gerais, e passaram a produzir queijo artesanal mineiro, que é reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Para isso, seguem os preceitos do uso do leite cru, do pingo (o popular fermento natural) e da maturação.

A ideia sempre foi resgatar a receita original do município, que fica na região turística de São João del Rey, e produzir em pequena escala. "Começamos com três peças ao dia e não pretendemos passar de 12", diz Cláudio. Além do queijo, sob a marca Casal Gastrô, a dupla faz iogurtes (natural e grego), coalhada seca, creme, manteiga, pães de fermentação natural, molhos, temperos, conservas, geleias e doces.

RECONHECIMENTO INTERNACIONAL

Família Barreto Silva

Produtores das cachaças Sanhaçu
Chã Grande (PE)

A produção de cachaça dos Barreto da Silva em Chã Grande, no interior do Pernambuco, começou em 2007, quando Oto, o filho do meio, que tem MBA em administração, decidiu que queria viver no campo com os pais.

Em 1993, o casal Glória e Moacir foi pioneiro no cultivo e no fomento de alimentos orgânicos no estado (quando a valorização era muito menor). Com a ajuda do rapaz, a ideia agora era criar um produto e uma marca que pudessem abrir um novo caminho para mantê-los.

Surgia assim a Sanhaçu, primeira cachaça com certificação orgânica de Pernambuco. Em pouco tempo, ela se tornou uma das mais premiadas do país, tamém com reconhecimento internacional em concursos importantes de Bruxelas e Berlim.

Durante a pandemia, a família ganhou o reforço de Elk, a caçula, que trocou o apartamento em Recife para ficar com os pais na propriedade, localizada a 85 quilômetros da capital. Formada em turismo, ela já cuidava da divulgação e das vendas da Sanhaçu e percebeu que ficar perto da produção pode ser melhor para o trabalho.

Estou considerando usar minhas economias para construir uma casa por aqui. Essa temporada me fez reavaliar a vida e valorizar a experiência que é viver no campo"

Novos olhares sobre o rural

As fotografias que abrem esta reportagem são de autoria da Brejo, a microprodutora de foto e vídeo criada pelo casal Nani Rodrigues e Marcos Lôndero. Nascidos em Minas Gerais, eles se basearam em São Paulo, mas em 2019, resolveram voltar as lentes para o campo. "Percebemos que gostávamos de trabalhos que nos levavam a viajar pelo Brasil para mostrar o país de verdade, do interior de Minas Gerais aos cacaueiros da Amazônia", diz Nani.

"Boa parte do que é o Brasil não está nas capitais", diz ela, que, com o parceiro, suja as botas para registrar produtores, lugares e alimentos pelos confins do país. O resultado vem em imagens como as da galeria a seguir, que retratam a poesia da lida e da vida do campo:

As ilustrações desta reportagem são de autoria do Arado, um estúdio criativo com foco no imaginário rural brasileiro. O idealizador do projeto, o artista visual Bruno Brito, foi criado no interior de São Paulo, viveu entre o Vale do Paraíba e a Serra da Mantiqueira, de onde busca as inspirações para sua prática artística. Ele acredita que "viver no campo" deixou de ser só um sonho, e passou a representar uma necessidade para muita gente.

Há também uma utopia rural que alimenta nossa necessidade pela natureza e nossas raízes, que as pessoas estão buscando mais e mais"

BRASILEIRO

Olhares sobre os sabores, belezas e saberes de nosso país

Esta reportagem faz parte da temporada Brasileiro, de Nossa, uma série de conteúdos especiais que, durante três meses, abordam temas relacionados às regiões do país. Ela é dividida em cinco ciclos, a começar pelo Sudeste, com a curadoria da cantora Teresa Cristina, que atua como editora especial de Nossa na seleção dos temas, personagens e criadores da temporada.

Ricardo Borges/UOL

Botequim da Teresa

Samba, petiscos de boteco e bate papo. Teresa Cristina une três de suas maiores paixões neste programa que mescla receitas e entrevistas com personalidades.

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Arte/UOL

O caçador de artistas

O arquiteto Renan Quevedo rodou o país para descobrir mais de 400 histórias da arte popular brasileira e resgatar e valorizar o trabalho de artesãos nos rincões do país.

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Ricardo Martins

Goles de história

A beleza dos campos e da lida na terra na produção dos cafés especiais na Serra da Mantiqueira, sul de Minas, captada pelas lentes do fotógrafo Ricardo Martins.

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