Quioto, a capital do quimono

A peça mais fascinante da vestimenta japonesa ao alcance de todos - nem que seja por algumas horas

Mirela Mazzola Colaboração para Nossa, de Quioto, Japão

Quando se chega a Quioto, a capital imperial do Japão entre 794 e 1868, o primeiro impacto recai, quase sempre, sobre os jardins, os templos majestosos e o casario bem-conservado de machiya, as antigas residências de madeira. Em seguida, outra imagem talvez traga de vez o visitante ao cenário de um filme histórico: a de mulheres (e homens) trajando quimono a passos curtos pela cidade.

É possível ver pessoas usando a vestimenta tradicional japonesa por todo o país, de senhoras carregando as compras a casais paramentados em um passeio a beira-rio. Mas é em Quioto que a tradição sobrevive com mais força -- de acordo com a Kyoto City Tourism Association, que promove o turismo local, há cerca de mil empresas de quimono na cidade, entre lojas e fabricantes.

Esse número não inclui as kimono rental, como são chamadas as lojas de aluguel do traje, pois não há um número oficial de quantas existem, diz o órgão. Em geral, as lojas de aluguel são procuradas por turistas que querem passear e tirar fotos especialmente na primavera, durante a floração das cerejeiras, e no outono.

É de se imaginar que o setor amargou os efeitos do fechamento das fronteiras com a pandemia de covid-19, mas o turismo interno ajuda a alimentar esse mercado, tal como moradores que alugam quimonos para ocasiões como casamentos e jantares formais -- por ser caro (pode custar milhares de dólares) e difícil de vestir, muitas japonesas preferem usar o serviço.

Uma experiência especial

Quando me mudei para Quioto, em outubro de 2019, havia uma certeza: eu não me aventuraria em uma kimono rental. Vestir quimono nunca foi um desejo e sentia alguma vergonha alheia ao ver uma estrangeira tentando agir naturalmente com o "geta", os tamancos de dedo japoneses, e diante da restrição de movimentos imposta pelas camadas de tecido.

Pairava também a questão da apropriação cultural, aquecida pelo episódio em que a empresária norte-americana Kim Kardashian anunciou que batizaria sua nova marca de underwear de Kimono. Na época, junho de 2019, o prefeito de Quioto, Daisaku Kadokawa, enviou uma carta pedindo que ela reconsiderasse a decisão (o que ela fez).

Kadokawa dizia que, por simbolizar a beleza, o espírito e os valores japoneses, o nome do traje não deveria ser monopolizado por uma marca. O texto também ressaltava que a procura dos turistas pela experiência de usar quimono é uma prova de que ele é amado no mundo todo.

Minha vez chegou quando um casal de amigos japoneses me convidou para a experiência, que normalmente inclui o aluguel por algumas horas e o penteado, por um valor adicional. Resguardada pela bênção dos locais e curiosa pelas etapas que envolvem vestir um quimono, mordi a língua e topei, ainda sem saber que seria uma das experiências mais especiais que vivi no Japão.

Vestir uma tradição

A experiência aconteceu em um lindo sábado de novembro de 2020, ápice do chamado "kouyou", quando as folhas de outono ganham tons quentes quase irreais. A loja escolhida foi a Wagan, instalada em uma pequena casa com piso de tatame atrás do Heian Jingu, imponente santuário xintoísta erguido em 1895 para celebrar os 1100 anos da fundação da antiga capital.

Aberta em 2016 pelo casal Hiroshi e Masako Katsurada, a Wagan atende principalmente japoneses e reúne o acervo pessoal de Masako, além de algumas peças novas, de segunda mão e cedidas por conhecidos. A família dela era proprietária de um ryokan, a pousada tradicional japonesa onde as funcionárias costumam vestir o traje.

A presença de peças antigas e originais (e não confeccionadas para aluguel), a clientela local e o preço acima da média são bons indicativos de lojas com autenticidade, menos massificadas pelo turismo. Na Wagan, por exemplo, o aluguel por 4 horas mais o penteado custa 8 mil ienes (cerca de R$ 370), mas há endereços em Quioto que cobram menos da metade disso.

Minha paixão pelo quimono vem desde criança, quando via minha mãe trabalhar no ryokan. Todas as peças da loja são especiais e amo cada uma delas"

Masako Katsurada

Florescer artístico

Ao entrar na loja, fiquei encantada diante de tantas cores e estampas. Ao contrário do que se pode supor, o tamanho não costuma ser um problema: todos os quimonos são feitos com um único rolo de tecido (os mais nobres, seda), em geral com 38 centímetros de largura por 13 metros de comprimento, e a altura da barra pode ser ajustada com dobras na cintura.

Sem perceber, escolhi um com estampa de sakura, a flor de cerejeira. "Sakuras são restritas à primavera", alertou Masako — um tipo de código de etiqueta rege cores e padrões de quimono de acordo com as estações do ano, que são bem-definidas no Japão.

Acabei escolhendo uma linda peça vermelha com minúsculos pontos brancos formando arcos. A estampa, chamada "same komon", imita pele de tubarão e foi difundida durante o Período Edo (1603-1868), caracterizado por relativa paz e isolamento político-econômico do resto do mundo.

"Nessa época, houve uma explosão de cores, tecidos e estampas conforme o Japão, pacificado e com relativa estabilidade social, prosperava e florescia artisticamente", diz Rafael Hett, pesquisador de moda e tecnologia e mestrando em Cultura Japonesa pela Universidade de São Paulo. A vestimenta nos moldes que conhecemos hoje remonta ao fim do século 16, embora haja registros do uso da palavra japonesa kimono (literalmente "coisa de vestir") já no século 8, conta o acadêmico.

Embora acredite-se que a ocidentalização tenha destruído a cultura do quimono, a reabertura do Japão para o mundo na segunda metade do século 19 proporcionou o contato com novas técnicas, pigmentos e referências, alimentando a riqueza encontrada nos acervos atuais. A adoção massiva da vestimenta ocidental só aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial"

Rafael Hett

O estilo do quimono tradicional às vezes é visível na moda japonesa até hoje. "Roupas justas e que marcam demais o corpo dificilmente são tendência entre os japoneses, que costumam preferir modelagens soltas e que destituam o corpo de suas formas naturais, como o quimono", diz o pesquisador, citando designers como Jotaro Saito e Rumi Shibasaki e o músico Yoshiki Hayashi como bons exemplos de releituras.

"Ambiguidade e fluidez entre masculino e feminino, que podem lembrar o traje historicamente usado para enevoar as fronteiras de gênero, são outro indício", explica.

Poesia na pele

Quimono escolhido, chegou a hora de me vestir — ou melhor, de ser vestida por Masako. Em cerca de 40 minutos, fui envolta em 13 peças, do nagajuban (a roupa de baixo) ao obijime (o acessório que lembra uma corda e envolve o obi, faixa larga que aperta a cintura) — sem contar o tabi (meia com prendedores do calcanhar), o tamanco, o acessório de cabelo e a bolsa de palha.

"A vestimenta completa tem, em média, 20 peças", explica a professora de quimono curitibana Kamila Yamashiro, 30 anos, neta de japoneses que mora na província de Chiba, a sudeste de Tóquio. Durante quatro anos, ela frequentou uma escola especializada até se formar e hoje ensina japonesas que querem se vestir sozinhas.

Sou apaixonada por quimonos desde que me conheço por gente, com 1 ou 2 aninhos, por influência da minha mãe e da minha avó japonesa. Acho que eles vão me acompanhar a vida toda"

Kamila Yamashiro

Cidade das gueixas

Sede da corte imperial por mais de mil anos, Quioto é o berço de uma das figuras mais fascinantes da cultura tradicional japonesa: as gueixas (ou geiko, como são chamadas no dialeto local). Sua origem mais provável remete aos bairros de prostituição das grandes cidades no Período Edo (1603-1868), onde algumas mulheres se diferenciaram pelo talento em artes como dança e música.

Com o tempo, essa classe se desvinculou da prostituição e se especializou em entreter clientes, sem manter relações sexuais. Hoje, estima-se que haja menos de mil gueixas e maikos (as aprendizes) em todo o Japão, uma fração do que existiu no passado. A formação delas começa por volta dos 20 anos e dura até 6 anos, com aulas diárias de dança, música, maquiagem e quimono.

É justamente a peça que levaria algumas garotas a querer ser gueixa atualmente. "Na minha vivência, foi unânime a admiração pelos quimonos, vestimenta do dia a dia delas para treinar e trabalhar. Além disso, muitas procuram a profissão para se sentir ainda mais exclusivas, já que apenas japonesas podem se tornar geikos", diz a jornalista brasileira Tata Meraki, pós-graduada em sociedade, história e cultura pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Quioto. Em outras regiões do país, homens e estrangeiros podem concluir a formação (apesar de gueixa parecer uma palavra feminina, ela vem de geisha, que significa "pessoa das artes").

Vestimenta com significado

Frequentados por turistas, políticos e empresários, os eventos com geiko e maiko costumam durar 2 horas e incluir jantar, uma conversa breve e apresentações de dança e de shamisen, um instrumento musical de três cordas. Os pacotes custam a partir de US$ 200 por pessoa (para até 20 clientes), podendo chegar a US$ 1,5 mil por pessoa em eventos privados, para famílias e grupos de amigos, por exemplo.

Uma forma mais acessível de vê-las é assistir aos espetáculos Miyako Odori e Gion Odori, que ocorrem na primavera e no outono, ou ainda flagrá-las entrando e saindo das salas de chá (onde ocorrem os jantares) nos bairros históricos de Gion e Pontocho. Embora pareça tentador, vale ficar com o bom senso e não fotografá-las sem autorização ou persegui-las pelas ruas — cena vista com alguma frequência antes da pandemia.

A relação de afeto e reverência que essas jovens, assim como Kamila Yamashiro e Masako Katsurada, nutrem pelo quimono ficou clara para mim quando me vi pronta, diante do espelho. Embora não tivesse ligação com o Japão antes de mudar para o país, logo compreendi o magnetismo que a vestimenta pode exercer.

Com a postura corrigida pelo obi e as passadas restringidas pelo ajuste da peça ao corpo, lembrava a todo minuto estar vestindo algo especial e cheio de significado — como o presente na chamada estética japonesa da sugestão e do detalhe, em que nada é óbvio e o que passa despercebido tem importância fundamental.

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