Receitas à mão livre

Chefs de cozinha, confeitaria e bar valem-se da ilustração em seus processos criativos

Fernanda Meneguetti (texto), Fernando Moraes e Keiny Andrade (fotos) Colaboração para Nossa

Diretamente no papel, sem esboço, nem correções. Desenhos criados no ato têm o poder de refletir observações imediatas e, sim, o talento natural de um artista — plástico ou culinário.

Ambos usam ilustrações como instrumento de trabalho, mas os do segundo tipo (não escalão!) se beneficiam do viés utilitário e sustentável da prática.

Com uma ideia na cabeça e um lápis à mão, chefs gravam o insight e concebem hits de seus cardápios, sem sujar louça e muito menos desperdiçar ingredientes.

Quando foi morar na Itália, lá pelo ano 2000, a gaúcha Helena Rizzo "anotava e desenhava as coisas que via nos estágios e nos restaurantes em que trabalhava. O objetivo era registrar, memorizar e repassar o que eu aprendia".

O tempo passou e o hábito ficou — estampar páginas com os próprios pratos vale para o primogênito Maní, para o Manioca, para os cardápios de eventos da Casa Manioca e até para a Padoca do Maní:

Falando em "rabiscos", alguns aparecem sob a forma de grafite nas paredes das casas da jurada do MasterChef Brasil, outros são ressuscitados às quintas-feiras em seu perfil no Instagram (@helenarizzo) para ilustrar os aprendizados, as experiências, os causos e a comidaida toda que marcaram sua carreira nesses pouco mais de 20 anos.

Nos #TBTs encontram-se o nascimento de sua primeira assinatura (os célebres biscoitos de polvilho do couvert do Maní); ingredientes, receitas e figuras simbolizando o seu estado de espírito no seu período na Espanha; projetos de montagens e muito mais.

"Gosto do exercício de escrever, mas o desenho pra mim é sempre mais fluido", é o que Helena costuma repetir nas redes sociais.

Desenho minhas receitas para não esquecer depois e para imaginar como vai ser o empratamento, mas também porque gosto de desenhar. Sempre fui rabisqueira: risco caderno, agenda, diário, papelzinho... o que deixar."

Helena Rizzo

Confeiteiro há mais de 15 anos, foi depois de passar pelas cozinhas de Mara Mello, Alex Atala e Bel Coelho, que o jurado mais querido do reality "Que Seja Doce" (GNT), Lucas Corazza, teve uma certeza (aprofundar-se em técnicas francesas e ingredientes brasileiros) e um estalo:

Percebi que a sobremesa tem uma coisa de ser arquitetônica, de você construir as camadas, estruturar as texturas e fazer com que não só sua 'edificação', mas que ela tenha um corte bonito, limpo".

Seja para esculpir um ovo de Páscoa, para erguer um bolo ou para elaborar uma nova versão de Floresta Negra, como esta da foto, é entre um traço e outro que o pâtissier tira suas próprias conclusões:

"Por exemplo, uma textura muito densa em cima pode amassar um creme embaixo e é no croqui que entendo a estrutura real do doce, como quero que o acabamento aconteça e com isso posso planejar que tipo de matéria vou precisar, que equipamento vou usar. É muito mais fácil esse rascunho sair do papel do que ficar no erro e no acerto no doce".

A facilidade vai do dom do artista, mas que é uma opção mais econômica, isso não se discute.

Telma Shiraishi quase se tornou médica, mas é à frente do Aizomê e da cozinha do Consulado Geral do Japão que ela dá asas à criatividade que ficaria represada dentro de um consultório:

Talvez por ter trabalhado também com design de moda, gosto de esboçar os pratos para pensar na composição e nos detalhes de sua proporção, antes de partir para a reprodução real".

A lápis, em qualquer pedacico de papel, é comum vê-la tracejar rapidamente uma receita para apresentar à sua brigada ou apenas para não perdê-la de vista. Porém, não é raro que a chef se debruce sobre folhas sulfites brancas, coloridas e recicladas mais calmamente para explorar sombreados e formatos de cerâmicas e de ingredientes.

Uma boa aplicação do método se nota nos traços do Koke Niwa (ou "Jardim de Musgo"), que equilibraram mousse de chocolate intenso, matchá, enoki e nozes caramelizadas, e que podem ser pedidos na unidade dos Jardins e da Japan House.

Escrever e desenhar são para mim atividades complementares e essenciais no processo de criação, materializando um mapa mental de ideias e de imagens e organizando o emaranhado de possibilidades que tenho a cada prato"

Telma Shiraishi

Thiago Bañares não é só o nome por trás do Tan Tan Noodle Bar, único representante brasileiro entre os 50 melhores bares do mundo, nem do delivery Ototo ou do yakitori-ya Kotori. Atleta profissional de gateball (ou getoboru), esporte japonês aparentado do cricket, o chef gosta de dar tacadas precisas.

Às vezes, na cabeça, um prato parece ter uma estética e uma funcionalidade que na prática não correspondem à imaginação. Aí, o desenho serve para isso: testar a louça, o tamanho do produto em si, o tamanho do bite (ou o número de mordidas) em relação à estrutura do prato, porque nele você entende se vai ficar muito flat, se vai ter impacto de altura, esse tipo de coisa", explica.

Além de equilibrar os ingredientes da receita e dar harmonia à apresentação, a avaliação na ponta do lápis permite "startar" as novidades: "Desenhar é um jeito de errar menos na hora de executar".

Este também é o jeito que Bañares imprime sua assinatura em suas marcas — os logos dos bonés, aventais, copos, guardanapos e jogos americanos são delineados por ele.

Tsuyoshi Murakami não vê seu Murakami, nos Jardins, como um restaurante, e sim como uma cozinha-palco onde contracena com os comensais. Por ali, ensaios são esporádicos, breves e pontuais. Muitas vezes se resumem a linhas apressadas em um guardanapo, em um espacinho em branco da correspondência e até no verso de uma nota fiscal.

Hoje me veio à cabeça um prato diferenciado. Era para ressaltar a nobreza do wasabi fresco, mas também uma desculpa para encenar aquela sacanagem de ralar a raiz na hora, de provocar com o seu formato fálico", filosofa Mura-san.

Sensualizador gastronômico compulsivo, ele nem insinuou o wasabi no papel: "É sobre wasabi, mas o prato em si seriam apenas três elementos: um lagostim, um ouriço do mar e uma vieira. Decidi rabiscar. Por quê? Porque o desenho me ajuda a não ficar só na poesia".

Em última instância, materializar o pensamento acaba sendo para o mais performático dos sushimen do país uma forma de se livrar dele: "Se pus no papel, vou ter de montar e aí já posso jogar o rascunho fora porque a ideia vai seguir a sua própria vida".

Grafiteiro aposentado e bartender premiado, Gabriel Santana, do Santana Bar, em Pinheiros, passou a associar os prints com a gastronomia durante a faculdade de hotelaria. Não demorou muito para concluir que a apresentação de uma receita é arte. Porém, começou "a desenhar os coquetéis para competições e hoje não sai um drinque sem um desenhinho".

Fã dos quadrinhos de Chico Bento, Santana se inspirou na fruta predileta do personagem para fazer frente a dois desafios: representar o Brasil na final de um campeonato mundial e se restringir a um único produto no coquetel a ser apresentado:

Desenhei a goiaba, criei um licor, um cordial (tipo de xarope) com as cascas, um bitter de goiabeira e, para finalizar, uma tuille só com a polpa. Em vez de chamar de goiaba ou goiabada líquida, roubei o nome de uma expressão dos gibis, que é 'Não Esquenta a Moringa'".

Afora um hit de seu bar, o Moringa representa também o processo criativo do barman: "Na hora de colocar o drinque num certo copo no papel você se questiona: é a taça ideal? Tamanho certo? Escrever a receita junto é um jeito de revisar se não falta algo, repassar os utensílios necessários e até comparar com invenções passadas".

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