Gaga: criador e criatura

O diretor de moda Nicola Formichetti revela para Nossa bastidores do álbum "Chromatica"

Gustavo Frank Travis Chantar/Francesco Carrozzini

O mundo recebeu em mãos (e ouvidos) há poucos meses o passaporte para viajar até o universo de infinitas possibilidades de Chromatica. O frenesi foi inevitável. Desde "Artpop", em 2013, Lady Gaga não chocava - e, convenhamos, essa é a sua melhor virtude.

O álbum traz a "Mother Monster" de volta ao pop, pelo qual a conhecemos há doze anos em "The Fame": desenho à la Bowie nos olhos, pessoas a chamando de "esquisita" e toda a extravaganza que nos levou à rota de fuga da mesmice.

Em "Free Woman", ela exclama: "Essa é a minha pista de dança, pela qual eu lutei". Não à toa.

O comeback não se restringe exclusivamente à instintiva vontade de puxar os móveis de lugar para criar a pista de dança, mas também ao seu visual extravagante e high fashion, marcado pelos saltos altos do tamanho de pernas, máscaras e implantes alienígenas.

É onde Nicola Formichetti entra em cena, diretor de moda da cantora, que, em entrevista exclusiva para Nossa, revela os bastidores do processo criativo para os visuais do álbum.

Frederik Heyman Frederik Heyman
Norbert Schoerner

Nicola é uma das mentes criativas por trás do icônico "vestido de carne" usado por Lady Gaga no VMA, o red carpet dentro de um ovo no Grammy, em 2011, e a moda nos videoclipes que marcaram a música nas últimas décadas, como "Born This Way", "Telephone", com Beyoncé, "You & I", entre inúmeros outros. A retomada da parceria, feita em 2018, após um intervalo de quatro anos afastados, celebra as raízes de quando ambos começaram a trabalhar juntos.

"Decidimos buscar vários looks usados por Gaga no passado para essa nova era", diz, citando "Bad Romance". "Todos eles terão referências que remetem a onde ela esteve na moda em determinados momentos da sua carreira. É como se fosse uma jornada: nostálgico, mas futurista ao mesmo tempo".

A transição que conecta o passado ao presente, por meio da música e da moda, é articulada nos mínimos detalhes por Nicola e Gaga — que é tão bem executada como o que experenciamos entre as faixas "Chromatica II" e "911".

"Sempre nos apaixonamos por nossas criações", acrescenta. "Dessa vez, não vai ser diferente. Acredito que tudo aconteça por um motivo maior".

Chromatica é um universo criado por Gaga. Não é sobre o futuro ou o passado. Na verdade, ela está falando sobre os dias atuais, sobre o hoje."

Nicola Formichetti

Rain On Me

Lady Gaga se juntou a Ariana Grande para a parceria intitulada "Rain On Me", segundo single de "Chromatica".

O clipe contou com a mente criativa de Formichetti por trás das câmeras — não muito diferentemente do que ainda está por vir.

Lançado poucos dias antes do álbum, enquanto o mundo se fechava dentro de casa por conta do coronavírus, o vídeo artisticamente se fez pertencer ao isolamento.

"Aconteceu em um momento em que todo mundo pode se unir para assistir e celebrar duas artistas incríveis", opina o diretor de moda.

Enquanto trabalhava nos conceitos para o visual do videoclipe, Nicola resgatou então ideias com os quais já tinha trabalhado com Lady Gaga em produções no passado.

Norbert Schoerner Norbert Schoerner

Por mais que estejamos falando sobre moda, não é exclusivamente sobre isso. É ainda mais importante. Para criarmos o visual, sentamos e ouvimos a música para saber como prosseguiríamos, procurar a mensagem que gostaríamos de passar e criar os respectivos personagens para a história".

Nicola Formichetti

Bastidores do videoclipe de "Stupid Love" | Arquivo Pessoal

Assim nasceu em "Rain On Me" o conceito de dois grupos diferentes que dançam, como se inicialmente estivessem um contra o outro, mas depois se fundem para se tornarem um só. A mistura entre o rosa e o roxo no figurino exemplifica isso.

"No começo, Gaga aparece com adagas no corpo e depois se levanta para dançar. Como se, por meio da arte, se recuperasse".

Com referências na moda punk, as roupas para o clipe, que sucedeu o primeiro single "Stupid Love", foram escolhidas de forma "mais sombria" em comparação ao visual do vídeo que deu início à era "Chromatica".

"Usei texturas com pregas e outros acessórios de prata. Optei também por usar o látex no figurino, porque sabíamos que todos ficariam cobertos de água durante a gravação", ri.

O enigma de Chromatica

Ao darmos um passo a mais na visita guiada pelo universo de Chromatica, Nicola conta estar ouvindo o álbum há um bom tempo e, desde maio, mudou diversas vezes o ranking de suas músicas prediletas.

"Acredito que a música, assim como um bom vinho, envelhece melhor com o tempo", brinca.

As roupas para o novo álbum e sua respectiva divulgação serão inspiradas pelas músicas e os elementos que a compõem, como o "vogue", por exemplo, na faixa "Babylon".

O "voguing" é caracterizado por imitar poses de modelos e nasceu na década de 80 nos ballrooms.

A festa em questão foi criada pela comunidade negra e transexual nos Estados Unidos, minorias apoiadas por Gaga e Nicola em suas iniciativas sociais. O diretor de moda foi reconhecido por suas ações pelo Queero 2018, da revista Them, e homenageado no Emery Awards 2018.

Moda é uma das ferramentas que usamos para nos comunicar, é por meio delas que as expressões ficam ainda mais poderosas", diz. "Para mim, a moda vai ainda além das roupas, inclui toda a beleza. Toda essa composição, quanto maior forem os detalhes, mudam completamente o visual."

Nicola Formichetti

Norbert Schoerner Norbert Schoerner
Norbert Schoerner

The Chromatica Ball

As datas para os shows de Chromatica precisaram ser adiadas em consequência do coronavírus, mas o processo como um todo não foi interrompido. Na conversa, Nicola comenta inclusive ter visto as hashtags engajadas no Twitter pelos brasileiros para que a cantora seja uma das atrações da próxima edição do Rock in Rio.

"Nós claramente já começamos a pensar na turnê", reforça na chamada por vídeo. "Está tudo acontecendo online! É divertido porque os fãs já começaram imaginar como vai ser e eu adoro ver as pessoas fantasiando como serão as roupas".

Nicola diz ter visto "conceitos incríveis", incluindo o brasileiro @laerttes (veja abaixo suas ilustrações), e tem ideia de juntar as criações feitas pelos fãs com as dele como ponto de partida para essa próxima etapa.

"É algo que eu nunca fiz antes", comenta. "Estamos criando um espaço em que os fãs de Gaga, como artistas e ilustradores, e nós da equipe possamos colaborar".

A ponte criada no Twitter, para o diretor de moda, é como o incrível acontece: "Essa é ideia da Gaga por trás do Chromatica: um lugar em que tudo é possível. Quero fazer isso desde o processo por trás das roupas até a execução delas".

"Nos meus trabalhos, independentes ou com a Gaga, sempre foi sobre fazer colaborações com outras mentes criativas. Por isso, amo a ideia de me juntar aos fãs dela, pois são eles quem têm os maiores conhecimentos sobre o seu trabalho".

Se a dúvida de que algo inesquecível vai acontecer nos palcos dos próximos shows ainda existe, Nicola crava: "Acredito que tenhamos muito tempo agora para pensar em tudo e fazer com que seja perfeito".

Reprodução/@laerttes Reprodução/@laerttes

Fashion!

A lista de colaborações de Nicola Formichetti conta com artistas como Rina Sawayama, Sam Smith, Cody Fern, Billy Porter, Aquaria, Jacob Elordi e, ainda mais recentemente, Anitta, com quem trabalhou para uma sessão de fotos da V Magazine, em que a brasileira foi capa.

O diretor de moda nasceu no Japão e depois se mudou para a Itália com a família. Sua mãe foi uma das principais referências para que ele começasse a sua carreira - que inclui prêmios como o de artista inovador pelo Elle Style Awards e duas nomeações à lista da BoF 500, que condecora os profissionais que "moldam a indústria da moda".

Acho que eu sempre estive destinado a esse universo. Minha mãe vivia na frente das vitrines nas ruas, então foi assim que meu interesse começou a surgir. Eu sempre soube que queria fazer algo relacionado a isso".

Quando se mudou para Londres, convivendo com amigos que trabalhavam na área, o interesse começou a se fazer ainda mais presente.

"Eu gostava de roupas, mas não tinha muito dinheiro", relembra. "Então procurava por elas em brechós e estava sempre de olho nas revistas para poder fazer as minhas próprias peças".

Fundador da marca agênero e street style Nicopanda atualmente, Nicola começou a trabalhar posteriormente como editor em uma revista de moda na capital inglesa, acompanhando sessões de fotos e como stylist, até se tornar diretor de moda.

"Depois disso, comecei a desenhar minhas próprias roupas", conta. "Eu faço um pouco de tudo [risos]. Não quero estar fazendo uma única coisa na minha vida".

Reprodução

A nova moda

Nas palavras do artista, a moda é uma ferramenta social: um meio pelo qual nos expressamos e que tem a responsabilidade de levar uma mensagem provocativa e, ainda mais importante, significativa. "Estar no mundo do entretenimento e da música me fez ver isso com ainda maior clareza", opina.

"É gratificante fazer algo que seja impactante e possa atingir as pessoas. A indústria da moda, em alguns casos, pode ser muito fechada. É bom encontrar um espaço dentro disso para poder se relacionar e crescer".

Quando a conversa se encaminha para trabalhar criativamente em meio ao coronavírus, Nicola diz "sentir muito pelo Brasil" pela "loucura que estamos vivendo".

"Estou usando esse tempo para me desafiar, criar uma nova maneira de me comunicar e fazer moda", diz. "Uma das únicas coisas que podemos fazer agora é agir de forma inteligente, estarmos juntos com quem gostamos e aproveitar o tempo para sermos espertos".

Por fim, o artista acredita que a moda será impactada pela pandemia e deve passar por uma transformação: "Acredito que não vai ser mais tanto sobre tendências, talvez seja o momento para procurar o 'menos' e o que é mais especial para cada um de nós, a fim de nos conectarmos. Precisamos mudar a ideia de que moda precisa ser sobre grandes posses".

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