Uma noite no templo

Repórter se une a monges num centro budista milenar no Japão

Mirela Mazzola Colaboração para Nossa, de Koyasan (Japão)

Eram quase 16h30. Estava no quarto de tatame, encantada com a fusuma, as divisórias japonesas pintadas à mão, separadas do teto por bonitos entalhes de madeira, à espera da sessão de meditação. Quando saí no corredor, o ranger do piso acusava que meus passos estavam pesados demais para aquele ambiente monástico cercado de paz e silêncio.

Mais adiante, uma sala rodeada por um jardim dava acesso ao salão principal — era onde a sessão iria começar no Ekoin, templo budista fundado há quase 1100 anos no Monte Koya, a 540 quilômetros de Tóquio.

Foi ali que me refugiei em um fim de semana de meados de junho, época já quente na cidade de Quioto, onde moro, para buscar ares mais frescos e tranquilos — devido à altitude, as temperaturas em Koyasan são, em média, 5°C mais baixas em relação a Quioto e Osaka, as duas bases mais comuns para quem pretende visitar o destino.

Embora não seja budista, viver no Japão e ter interesse pela cultura do país inevitavelmente te convidam a tentar conhecer a doutrina e seus templos majestosos. Por conta da pandemia, adiei a viagem a Koyasan até última oportunidade antes de voltar ao Brasil. Uma despedida e tanto.

Todos os dias, no mesmo horário (16h30), os visitantes são convidados a aprender o ajikan, prática meditativa da escola budista shingon (que, em japonês, significa "mantra"). Medita-se sentado no chão, com as pernas dobradas e a coluna ereta. Os olhos não se fecham completamente: eles devem ficar entreabertos a ponto de conseguir perceber o que acontece ao redor.

O Ekoin é um dos cerca de 50 templos onde é possível pernoitar no Monte Koya, na província de Wakayama. Chamada de shukubo, a hospedagem em templos budistas encontra vários exemplares espalhados pelo Japão, mas nenhuma área é tão conhecida entre os estrangeiros quanto a sede do budismo shingon.

No alto da montanha, a 900 metros de altitude, a região com mais de uma centena de templos foi declarada Patrimônio Mundial pela Unesco em 2004.

Conta-se que o Monte Koya foi escolhido em 816 pelo monge Kukai (774-835) — postumamente chamado de Kobo Daishi — para sediar o complexo monástico da escola fundada por ele, também chamada de budismo esotérico. Kukai também era poeta, engenheiro e calígrafo — é atribuída a ele a invenção dos kana, os dois silabários que compõem a escrita japonesa juntamente com os kanji, os caracteres chineses.

O monge morreu em 835, mas seus seguidores acreditam que, na verdade, ele se encontra em estado meditativo até hoje em um mausoléu no Okunoin, o maior cemitério do Japão e principal atração de Koyasan. Todos os dias desde então, monges preparam duas refeições e as levam até a entrada no mausoléu, que nunca teria sido aberto a não ser algumas décadas após a morte do monge, quando um outro religioso teria cortado seu cabelo e barba e trocado sua roupa.

Norihiro Fukayama, apelidado de Nori-san, é quem conta essa história, de frente para o mausoléu, um dos mais sagrados locais de peregrinação do Japão, em uma visita guiada noturna. Segundo ele, o local também passou a atrair peregrinos inusitados: caçadores de Pokémon GO, o que fez os administradores buscarem a Nintendo para resolver a questão.

O jovem guia de 32 anos é quem conduz sessões de meditação. Os hóspedes são divididos em dois grupos, um conduzido em inglês e outro em japonês. A diária custa cerca de 12 mil ienes por pessoa (R$ 550), com café da manhã e jantar incluídos.

O guia Nori-san trabalha no templo Ekoin há quatro anos, enquanto completa sua formação monástica. Antes, ele era um típico "sarariman" — uma referência à expressão inglesa "salary man", ou seja, um assalariado, que no Japão remete à imagem de um funcionário corporativo que por vezes trabalha por horas a fio e de tão esgotado acaba dormindo na estação de metrô.

"Minha jornada espiritual passou por muitos lugares. Fiz um mochilão pela Ásia, incluindo um retiro de meditação e silêncio de 10 dias na Índia, e morei por um tempo na Austrália. Tudo isso antes de me encontrar no meu próprio país"

Ao longo dos dois quilômetros entre o cemitério Okunoin e o mausoléu, imensos cedros de até 800 anos dividem espaço com 200 mil sepulturas, muitas de aparência curiosa, com cinco pedras de diferentes formas empilhadas. As pedras, diz Nori-san, representam os elementos com os quais, segundo o budismo shingon, todos os seres são feitos: terra, água, fogo, vento e espaço. Um sexto elemento — a consciência — é representado pela ponta da quinta pedra).

Ali também estão mausoléus de nobres, senhores feudais, mortos de guerra e um dedicado ao imperador. Há até os que pertencem a empresas, com direito a logomarca na lápide.

Entre a meditação e a caminhada no cemitério Okunoin, tomei um banho — os banheiros normalmente são coletivos e separados por gênero, no estilo tradicional japonês, com duchas, penteadeiras e uma fonte de água termal em que é preciso entrar nu.

O jantar é servido às 17h30 no estilo shojin-ryori, a comida monástica preparada sem alho, cebola e ingredientes de origem animal. Na refeição colorida e saborosa com tempurá de vegetais, algas, arroz e missoshiru, destacam-se o koya-dofu, um tipo de tofu frito e frio, e o goma-dofu, à base de gergelim e com uma textura aveludada e cremosa, diferente da do tofu comum. Também são servidas bebidas alcoólicas (saquê, cerveja ou vinho).

Enquanto eu jantava, o futon, acolchoado japonês que pode ser dobrado e guardado no armário, já havia sido montado sobre o tatame do quarto. A qualquer momento, na própria acomodação, é possível praticar o shakyo, a cópia manual de textos budistas (os sutras) em papel translúcido.

O sono veio depois de uma última cerveja, solicitada com a ajuda do guia Nori-san e bebida no quarto. As tradicionais portas de correr, com fino papel emoldurado, podem ser cruéis em noites frias - apesar de estarmos perto do verão, dormi sob o edredom até amanhecer.

Na manhã seguinte, uma música convida para a primeira oração do dia, às 6h30. É a hora do ritual do incenso budista. Acredita-se que a queima, oferecida aos ancestrais, também purifique os presentes.

Em determinado momento, os convidados devem ir até o altar, curvar-se, pegar um pouco do incenso (cuja forma lembra serragem), aproximar da testa e depositar em um recipiente fumegante. Os mantras entoados pelos monges tornam a experiência mais transcendental.

A última e mais esperada cerimônia, às 7h, antecede o café da manhã, também ao estilo monástico. O ritual do fogo consagrado existe apenas na vertente vajrayana do budismo, à qual pertencem as escolas esotérica e tibetana. Como em outras tradições pelo mundo, o fogo teria um efeito poderoso de purificação e limpeza espiritual — a chama simboliza ainda a sabedoria de Buda.

Em um cômodo fora da construção principal, os monges entoam mantras ritmados pelo som do taiko, um instrumento de percussão, enquanto a fogueira no centro é alimentada por ervas, incenso e ripas de madeira. Estas são deixadas no quarto para que o hóspede escreva seus pedidos na noite anterior e representam o desejo humano — a raiz do sofrimento segundo o budismo.

Eu e meu marido pegamos logo duas cada um, e as amigas japonesas que estavam conosco perguntaram por quê. Respondi com meu japonês de principiante algo como "temos muito o que pedir porque somos brasileiros".

  • Rumo a Koyasan

    De Quioto, a viagem leva cerca de 3 horas e passa pela estação Gokurakubashi, em Wakayama, de trem. Dali sai o funicular para a estação Koyasan, de onde partem ônibus que levam ao cemitério Okunoin, passando pelas principais atrações e templos. A melhor forma de conhecer a cidade é a pé e de bicicleta.

  • Kongobu-ji

    Trata-se do principal templo do budismo shingon em Koyasan. A profusão de divisórias fusuma, pintadas com cenas da natureza e da vida de Kukai, enche os olhos. Na parte externa está nada menos que o maior jardim de pedras do Japão, com 2.300 metros quadrados e 140 peças de granito.

  • Danjo Garan

    O complexo foi inaugurado por Kukai como um local de treinamento monástico. No interior, há vários templos e outras construções, como o Konpon Daito, um pagode (torre com múltiplas beiradas muito comum na Ásia) com 48 metros de altura, que é considerado um símbolo de Koyasan.

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