É hora do chá brasileiro

Pequenos produtores se unem para divulgar a bebida para um público tímido, mas devoto

Fran Micheli Colaboração Para Nossa

"O caminho do chá não tem volta". Essa é a frase que mais se ouve durante a Rota do Chá, evento que leva, desde 2016, amantes da bebida até os chazais das famílias Amaya, Yamamaru e Shimada, além da indústria japonesa Yamamotoyama, no Vale do Ribeira, em Registro, interior de São Paulo.

Estes resistiram ao tempo com suas plantações da Camellia sinensis — a única erva que pode ser chamada de chá, quando infusionada (veja no quadro ao pé na matéria) — e atraíram cerca de 50 pessoas, entre leigos e interessados, no 5º encontro em outubro deste ano.

A rota foi idealizada pela professora Yuri Hayashi, fundadora da Escola de Chá do Embahú. Hoje, é organizada pela Renata Acácia, especialista em chás e empreendedora da @infusorina, plataforma que comercializa e divulga os chás nacionais.

Renata, que teve contato com o chá brasileiro em meados de 2014, conta que, na época, as produções não tinham visibilidade e era preciso fortalecer a autoestima daqueles descendentes de imigrantes japoneses que tanto fizeram e fazem pelo chá no Brasil.

O primeiro passo foi fazer as famílias entenderem o quão importante é o que elas produzem e o jeito que produzem", explica.

Chá verde e amarelo

Uma xícara de chá brasileiro carrega toda a trajetória da imigração japonesa, no início do século 20. Foi quando Torazo Okamoto se estabeleceu em Registro, trazendo sementes e mudas da Camellia Sinensis e iniciando o manejo no Brasil.

Na segunda metade do século, a cidade chegou a ter 45 fábricas de chá, conquistando o título de capital do chá no Brasil. Mas, no início dos anos 1990, com a crise do plano Collor e mudanças nas leis trabalhistas, a grande maioria das famílias não conseguiu mais trabalhar e abandonou suas plantações, voltando para o Japão.

Foi em 2016, com a primeira Rota do Chá, que as famílias que continuaram plantando e processando o chá passaram a ser reconhecidas.

Três famílias carregam atualmente uma história de glória, queda e resiliência do chá brasileiro. Cada uma com seu método de produção, mas todas empenhadas em cultivar e processar chás de altíssima qualidade.

Os Amaya, Shimada e Yamamaru abriram as portas de suas casas e chazais para receber os mais de 50 participantes da Rota do Chá. A cada parada, um dedo de prosa. A cada gole na bebida oferecida, um sentimento de gratidão por nunca terem desistido.

Amaya e chá na Coca-Cola

Há 102 anos em Registro, a família Amaya conta com três gerações tocando os negócios desde a década de 1930. Hoje, possuem a última fábrica de chá de grande porte no Brasil.

Ryogo Amaya é o tímido e modesto mestre de chás. É ele quem controla as etapas do processamento com perfeccionismo, já tendo conquistado até um prêmio de inovação no agronegócio, o Kyioshi Yamamoto, por diminuir o tempo de processamento de 4 horas para 30 minutos, otimizando recursos e produtividade.

Milton Amaya, seu primo, é quem comanda os negócios, e lamenta que a fábrica esteja funcionando com menos da metade da sua capacidade produtiva.

"Nunca nos preocupamos com divulgação porque exportamos até 2012, mas as mudanças climáticas atrapalharam muito a produção. Em 2014 lançamos nossa marca própria, foi alternativa para a salvação da empresa", diz Milton, afirmando que o recente interesse do brasileiro por kombuchas (bebida à base de chá fermentado) tem despertado a curiosidade pelo chá puro.

Hoje, a família Amaya fornece chá preto para grandes empresas como Coca-Cola e Matte Leão. O primeiro chá gelado lançado pela Pepsi nos EUA, em 1960, também levou o chá da família em sua composição.

Yamamaru e o poder da Rota

Moradores do bairro da Raposa desde 1918, os Yamamaru (foto) recuperaram recentemente os chazais abandonados e engolidos pela Mata Atlântica. Hoje, se dedicam ao cultivo pelo sistema agroflorestal (SAF) em consórcio com o palmito juçara. O processamento é totalmente artesanal e produção, limitada.

Após alunos de uma universidade fazerem um trabalho acadêmico sobre o chá agroflorestal, em 2017, dona Miriam Yamamaru se motivou e foi ao Japão estudar processamento para melhorar a qualidade do chá final.

Em 2018, as criadoras da Rota do Chá, Renata e Yuri, fizeram contato pela primeira vez.

Quando elas vieram aqui, insistiram muito para conversarmos, porque eu nem sabia que existia sommelier de chá, era um mundo desconhecido pra gente. Hoje, temos muita gratidão pelas duas que persistiram quando não queríamos nem abrir a porta. Deu tudo certo graças a elas", conta Miriam, emocionada.

Por lá, os participantes da Rota podem colher as folhas jovens da Camellia Sinensis embrenhada na Mata Atlântica. Depois de preparado, o chá carrega um sabor marcante de madeira úmida e plantas recém banhadas pela chuva.

Shimada e um toque de "vó"

Não há quem não se emocione na presença da dona Ume Shimada (foto), matriarca da família que já recebeu o título de "rainha da lichia", pela produção sem precedentes no Brasil. Ao lado dos pés da fruta chinesa bem adaptada, um chazal orgânico aguarda a colheita artesanal do ano: é dali que saem os chás verde, preto, branco e, surpreendentemente, um dourado, lançado com exclusividade durante o almoço do evento. Os seis filhos vibram ao anunciar a inovação.

Aos 94 anos, dona Ume é um ícone. Em 2014, aos 87, lançou a própria marca para salvar os negócios da família. Batizado inicialmente de "Obaatian — o Chá da Vovó", o preto escandalosamente floral fez o maior sucesso entre os fãs de chá. A marca "Sítio Shimada" veio depois com os outros estilos de processamento.

A colheita segue de setembro a maio. A filha, Terezinha Shimada, é a mestre de chá que conduz cada etapa da produção: murchamento, vaporização, enrolamento, secagem e, ocasionalmente, defumação. O maquinário é todo artesanal também, construído pelo "professor Pardal" de Registro, o senhor Tomio Makiuchi. Este genial amigo das famílias produtoras é responsável pela mecanização de muitos chazais e projetos voltados à educação.

Ninguém ainda foi para o céu e voltou para contar como é lá. Mas hoje, com vocês aqui, conheci um pedacinho dele", disse dona Ume com a voz embargada de emoção.

Yamamotoyama, resistência no Brasil

Apesar de fugir do perfil de empresa pequena e familiar, a Yamamotoyama segue no Brasil como braço da matriz do Japão. Com investimento estrangeiro, a companhia de 320 anos segue a rigidez japonesa, proibindo fotos e vídeos dentro da fábrica. Tem a capacidade de processar incríveis 450 quilos de folhas frescas por hora, que se reduzem a apenas 30% no produto final. São quase 200 hectares de plantação desenhada em uma paisagem pitoresca a 700 metros acima do nível do mar.

Maurício Kitano (foto), gerente da fábrica há 41 anos, explica que a cidade de São Miguel Arcanjo (80 quilômetros de Registro), foi o local perfeito para o cultivo das mudas que vieram do Japão na década de 1980. "Hoje, nosso principal mercado são as casas de produtos naturais. Na pandemia as vendas cresceram, mas poderiam ter crescido mais", conta.

Ironicamente, a sede da Yamamotoyama no Japão fechou as portas, restando apenas a unidade brasileira. E a maioria da produção é exportada para o Japão.

Por que o chá é tão apaixonante?

Especialistas contam como a bebida entrou (e nunca mais saiu) de suas vidas

Gaelle Artemis

"O mundo no qual a gente vive é muito doído e o chá é um convite para uma pausa. Muitos enaltecem o chá pelos benefícios da saúde física, mas isso é pouco comparado ao que ele traz para minha saúde mental. Faz parte dos prazeres simples da vida." Francesa radicada em São Paulo há 10 anos, Gaelle já viajou o mundo para desbravar os chás locais e, na pandemia, transformou os vídeos em curso online, o "Viagem ao Mundo do Chá". Além disso, cria conteúdo bem humorado no Encantadora de Chás, canal do YouTube em que ensina receitas com a bebida.

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Fábio Pedroza

"Pra mim, o chá é apaixonante por toda a sua história milenar, pela complexidade de tipos, aromas e sabores que uma mesma planta pode proporcionar. Mas talvez seja ainda mais apaixonante pelas trocas que proporciona. As conexões e trocas entre as pessoas fazem parte da maneira de consumir o chá -- isso é unanimidade entre os que fazem parte do mundo do chá", diz Fábio, que é antropólogo e professor. Ele compartilha seus conhecimentos sobre a bebida no perfil do Instagram Vai Té Chá.

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9 curiosidades sobre o chá

  • 1

    Os especialistas na bebida consideram chá apenas a bebida extraída da planta Camellia Sinensis. Todas as outras, como hortelã, camomila, erva doce, etc, são infusões, ou tisanas.

  • 2

    No Brasil, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) considera qualquer bebida infusionada como "chá".

  • 3

    Uma planta de Camellia Sinensis demora 5 anos para chegar a sua primeira colheita.

  • 4

    A Camellia Sinensis dá origem a 6 famílias essenciais de chá: brancos, verdes, amarelos, oolongs, pretos e pós fermentados (como o Pu Erh, originário da região de mesmo nome na China).

  • 5

    A Camellia Sinensis é uma árvore que pode passar dos 10 metros de altura. Para o cultivo, poda-se a planta para que fique sempre em torno de 60 centímetros

  • 6

    Existem diversos tipos de chás em cada família. Suas denominações vêm a partir da parte da planta utilizada, exposição ao sol, tipo de secagem, processamento, origem geográfica (ou terroir).

  • 7

    Em avaliações profissionais na China, os degustadores também avaliam o subjetivo "Qi" (pronuncia-se "Tchi") do chá, ou seja, o impacto energético que ele traz ao corpo

  • 8

    12 kg de folhas frescas produzem apenas 2kg de chá pronto, devido à perda maciça de água no processamento

  • 9

    Já existe uma associação que reúne profissionais, sommeliers e empreendedores da área, a ABChá, fundada em 2019.

Na rota e na rede

Para quem se animou em conhecer a história, as famílias e a produção de chás brasileiros, as vagas para a Rota do Chá de 2022 já estão abertas e há desconto para quem comprar antecipadamente. O pacote não inclui hospedagem, mas a organização tem parceria com um hotel da cidade de Registro e as diárias saem por a partir de R$ 80. Traslados, almoços e visitas guiadas fazem parte do ingresso.

6ª ROTA DO CHÁ EM REGISTRO / SP
Quando:
03, 04, 05 e 06 de novembro
Quanto: 1º lote -- R$ 2.489,00 em até 10 x sem juros
Inscrições: https://infusorina.com/rota-do-cha-2022/

Se você também está interessado em conhecer o produto das famílias no conforto do lar, há poucos pontos de venda, todos online: Infusorina, Chá Do, Sítio Shimada, Tea and Co, Japan Store, Mercearia Kampai, Loja Ikebana, Umami Produtos Orientais, Probioticos Brasil e Supermercado do Oriental.

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