A Disneylândia do surfe

Como os brasileiros Ícaro Ronchi e Gabriela Sumar construíram um paraíso para surfistas em ilha indonésia

Por Adriana Negreiros

De vez em quando, o surfista e empresário Ícaro Ronchi, de 31 anos, e a dentista Gabriela Sumar, 30, escutam uma pergunta estranha. "Como vocês aguentam essa vida?"

Eis a vida do casal: de fevereiro a novembro, moram na ilha de Bali, na Indonésia. Nos outros meses, que coincidem com o verão no Brasil, alternam-se entre Florianópolis, cidade natal de ambos, e Fernando de Noronha.

Às vezes, dão um pulo nas Maldivas ou em algum trecho do litoral europeu. Dado o nomadismo, não têm uma casa com televisão, sofá e cama. Andam de hotel em hotel, eventualmente hospedando-se na casa da família (se há família por perto).

Isso quando em terra firme, porque também passam temporadas em alto-mar, acordando cedo para aproveitar o sol e os banquetes preparados por um chef de cozinha com talentos múltiplos — além de assar os próprios pães do desjejum, Ícaro prepara sashimi com peixe recém-fisgado e garante-se no arroz com feijão nos dias em que a saudade do Brasil aperta.

Numa das primeiras vezes em que Ícaro disse essa frase para Gabriela, os dois ainda eram jovens namorados com uma vida convencional: ela, estudante de odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina; ele, às voltas com um emprego burocrático na secretaria de turismo de Florianópolis — e uma mínima empolgação com o curso de administração de empresas.

Corria o final do ano de 2012 e Ícaro tentava conformar-se com a ideia de que a vida talvez fosse aquilo mesmo: passar a semana num escritório refrigerado, em meio a bancadas de fórmica amarelada e planilhas de Excel; e, já que estava ali, quem sabe, pudesse disputar uma vaga na Câmara Municipal de Florianópolis.

Ao dividir o plano com um amigo surfista, levou uma bronca. "Vereador? Cara, tá maluco? Não tem nada a ver contigo. Dá pra ver no teu semblante que tu não tá amarradão"

De fato, Ícaro não estava amarradão. Quando botava o blazer por cima da calça e camisa sociais para ir à repartição ficava "igual a uma caixa de fósforos", como conta. Sentia falta da praia, seu habitat natural desde muito pequeno. Ainda bebê de colo, frequentava os campeonatos de surfe ao lado do pai, o jornalista e empresário Ledo Ronchi, fundador da Inside, uma revista especializada no esporte que fez história no ramo nas décadas de 1980 e 1990.

Mais crescido, ficava sem assunto com os amigos quando a conversa girava em torno de videogames e afins. Foi o último entre os garotos a ganhar um celular, pois não dava a mínima para gadgets. Preferia pranchas, pelo simples prazer de pegar onda, sem pressão. Nas vezes em que participou de campeonatos, achou chato. "Eu não era competitivo", conta.

Por volta dos 18, disse aos pais que não queria ser surfista profissional. "Pois vá apenas surfar", incentivou a mãe, Simone. Ajudava o fato da família morar perto do mar — primeiro, no Beco dos Surfistas, na Lagoa da Conceição; depois, em Ponta das Canas, no norte da ilha, onde uma tragédia mudaria a forma de Ícaro compreender a vida.

Em 2010, o pai, Ledo, foi morto a tiros numa tentativa de assalto, em casa. Tinha 50 anos. A partir de então, Ícaro começou a se dar conta de que não fazia sentido planejar o futuro. E de que a vida é curta, como passaria a dizer, repetidas vezes, para Gabriela, com quem começaria a namorar.

Em 2012, Ícaro calculava se valia a pena usar as economias advindas do seguro de vida do pai para comprar um barco na Indonésia. A proposta, vinda de um antigo amigo, era que se associassem na aquisição. Tendo um barco, poderiam navegar aos destinos para surfar. Também aproveitariam a estrutura para oferecer pacotes de viagens para interessados nas melhores ondas do mundo, nas ilhas Mentawai — local que Ícaro conhecera em 2007 e pelo qual se apaixonara. "É a Disneylândia do surfe", define.

As contas mostraram que, na pior das hipóteses, a compra lhe permitiria viajar para lá nove vezes, durante três anos. Na ocasião, ele já concluíra que os prazeres não podem ser adiados para amanhã — "pois não sei se estarei vivo", como diz — e ficou tentado a aceitar proposta. Ao pedir conselhos à mãe, ouviu: "Compra". E assim Ícaro Ronchi tornou-se um dos proprietários do Sibon Explorer.

Entretanto, passou cerca de um ano vendo o barco apenas à distância, por fotos. Gabriela achava aquilo interessante, mas um pouco assustador. O relacionamento fortalecia-se na mesma intensidade em que ela fazia planos para a carreira como dentista. Ao fim de 2013, período em que concluiu a faculdade e desligou-se da secretaria de turismo, Ícaro finalmente viajou para a Indonésia e pôde aproveitar o Sibon Explorer — além de começar a faturar algum dinheiro.

Ele e o sócio começaram os negócios levando turmas de surfistas conhecidos para uma temporada de 12 dias em Mentawai. O boca-a-boca entre os endinheirados do ramo (afinal, não é trivial pegar um voo até a Indonésia e permitir-se passar metade de um mês a bordo) atraiu novos interessados para o programa. O barco passou a fazer cerca de 15 viagens por ano.

Em 2014, todos os pacotes estavam vendidos até 2016, quando os amigos adquiriram um segundo barco, o Sibon Baru. Dessa vez, era uma embarcação novinha, fabricada no ano anterior. Em 2017, venderam o Sibon Explorer e fizeram uma nova compra — o Sibon Jaya, espécie de iate de luxo, para receber não apenas interessados em enfrentar as melhores ondas, mas simplesmente curtir sol e mar num cenário paradisíaco.

Quanto mais Ícaro seguia o ritmo das ondas na Indonésia, mais Gabriela fincava raízes na terra firme de Florianópolis. Começou a trabalhar como dentista, distanciando-se da vida solar do namorado. Então tomou uma decisão que contrariava tudo o que havia planejado milimetricamente para si. Abandonou a odontologia e decidiu seguir o namorado.

Ouviu da mãe que aquilo não era certo: "Você vai abandonar a sua vida para seguir a dele". "Não", Gabriela respondeu. "Não é a vida dele, é a nossa"

Em 2019, Gabriela e Ícaro casaram-se em Florianópolis. Na sequência, viajaram para a Indonésia, com a intenção de passar o ano de 2020 inteiro no barco, em viagens com os grupos de turistas. Mas veio a pandemia e os pacotes tiveram que ser cancelados, quase todos. Em 2021, por medida de segurança, a tripulação das viagens precisou ser reduzida. Gabriela assumiu uma das funções, de fotógrafa e videomaker dos passeios. A atividade virou profissão.

Dos clientes da Sibon Charters (nome da empresa que oferece os pacotes), cerca de 60% são brasileiros; 25%, australianos; 10%, norte-americanos; e 5% de outras nacionalidades. Cada pessoa paga cerca de US$ 3.000 (R$ 16.500) pelo passeio de 12 dias, a depender do barco escolhido. O valor inclui três refeições a bordo, além de bebidas (exceto destilados).

Quando alguém se machuca feio e leva um corte, é Gabriela quem larga as câmeras, volta a ser profissional de saúde e dá os pontos na pele do infeliz. Nessas horas, ela lembra por que, apesar de arriscar-se de vez em quando sobre uma prancha, ainda prefere a segurança do convés.

Aos que fazem a estranha pergunta de como ela e Ícaro aguentam levar os dias assim, com a pele bronzeada, entre o sol e o mar, a resposta é simples. Gabriela diz que não troca essa vida por nada.

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