Breaking Bad abaixo de zero

Como é feito o gelo translúcido, hit entre os bartenders e pronto para chegar aos drinques caseiros.

Juliana Simon De Nossa Bernardo Lemes

Desde setembro de 2019, uma alquimia acontece em um pequeno espaço sem campainha na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. O que funciona lá dentro só se tem uma pista ao ver a Fiorino estacionada logo à frente com os dizeres Companhia Paulistana de Gelo (CPG).

Ao entrar no espaço que lembra um frigorífico e ver os irmãos Fernando José e Rodrigo Pereira encapuzados e mascarados, é inevitável não se lembrar da icônica série "Breaking Bad".

No lugar de baldes de C10H15N (a fórmula química da metanfetamina) de Walter White, o que se vê são impressionantes etapas de congelamento da mais pura H2O: uma enorme geladeira, freezers horizontais e um espaço com serras, correias e mesas onde a água congelada ganha a forma "ao gosto do freguês".

Admirável gelo novo

Para obter o gelo perfeito, a dupla faz uso de um maquinário sofisticado - que, ironicamente, reproduz o produto mais primitivo, aquele tirado "no braço" dos lagos congelados do Hemisfério Norte.

Dois freezers importados simulam o sistema lacustre: abastecidos com 150 litros de água mineral, os tanques e seus dois circuladores trabalham para solidificar o gelo em camadas, de baixo para cima, durante 56 horas de processo a temperatura que chega a - 25 °C.

Através de serras especiais, os grandes blocos de gelo são transformados em cubos e retângulos e, então, são transportados para uma imensa câmara fria, onde secam entre -15 ºC e - 20 ºC e ficam armazenados até a entrega.

Por que o gelo da famigerada forminha do seu freezer não fica transparente e derrete mais rápido?

Fernando explica: o gelo comum se consolida de fora para dentro, e, como o volume do gelo é maior que o da água, forma-se um "Big Bangzinho" em seu interior. Com isso, qualquer mudança de temperatura é suficiente para estourar e gerar mini rachaduras. E com essa maior superfície de contato e entrada de impurezas, o gelo derrete mais rápido.

Palavra de bartender

Quem melhor para lutar por "um gelo melhor" que os que têm as pedrinhas como matéria-prima?

William Baglione

Alex Mesquita, do Tantan

Já acompanho a produção de gelo artesanal desde 2009, mas foi em 2015 que conheci o gelo translúcido no Alinea de Chicago, feito com processo profissional. Hoje, um bar falar que não tem gelo translúcido já é um grande pecado, pois, além do visual, ele tem menor diluição e mantém a temperatura correta em todas as receitas.

Divulgação

Lula, do Picco

O gelo tem grande importância na criação e elaboração de um coquetel. Temos que pensar nele sempre como um ingrediente daquilo que iremos preparar. O gelo, além de obviamente gelar o coquetel, quando diluído muda sabores, intensidade e textura daquilo que estamos bebendo.

Divulgação

Zulu

Tive o primeiro contato com o gelo translúcido em 2013, quando cuidava do extinto La Maison est Tombee, no Itaim (SP). O papel do gelo ainda é bastante estético - e é o que o consumidor final mais percebe. Na questão sensorial, sua baixa diluição aumenta a produtividade da mistura do coquetel e deixa mais estruturado.

Bernardo Lemes

"Mestres-geleiros"

Por enquanto, não existe curso para fazer gelo, mas o material para reproduzir as pedras de mais qualidade são encontrados com facilidade em sites especializados e até mesmo em gigantes como Amazon e Ebay.

Segundo Fernando, no entanto, já dá para fazer um bom teste com um cooler ou isopor mesmo. Basta forrar seu interior com plástico, encher com água de boa procedência, colocar no freezer e retirar antes que congele totalmente - antes de 12 horas.

Este método caseiro ainda é o utilizado em muitos bares e já é um passo à frente das pedras comuns.

Porém, para quem não quiser ter esse trabalhão, a intenção dos irmãos é justamente massificar o gelo translúcido e provar que o custo-benefício é alto: os "carros-chefe" são as pedras clássicas de 50 mm x 65 mm e 50 mm x 50 mm, que saem por R$ 1,90 a R$ 2.

Com um público conquistado no "boca a boca", redes sociais e atendimento "até no perrengue de uma noite de domingo", a CPG negocia volume, prazo de pagamento, parceria de post, entregas programadas, mas prevê o futuro em que "todo mundo vai comprar esse tipo de gelo em supermercado".

Como viver numa fria

Investir no gelo translúcido e chegar aos mais de 20 fornecedores não foi um projeto que surgiu "do nada". Arquiteto de formação, Fernando enveredou pela carreira de chef e foi nela que conheceu o que seria seu gelado ganha pão.

Após trabalhar em alguns restaurantes de São Paulo, partiu para a Suíça com o objetivo de juntar dinheiro para conhecer o Japão. Num jantar na parte glacial da rede de chalés a revelação: os hóspedes se serviam de drinques em copos feitos com gelo límpido retirado diretamente da montanha. "A gente pirava", lembra Fernando.

Em um breve retorno ao Brasil, o segundo chamado: um amigo chamava atenção para os cubos transparentes que dominavam os grandes bares pelos Estados Unidos e Europa, mas ainda não encontrados no Brasil.

Na "terra do Sol Nascente", a conquista definitiva. "No Japão, tem esse gelo em todo canto. Nas lojas de conveniência encontramos a geladeira de gelo comum e de gelo translúcido de todas as formas: cubo, esférico, em placas. Até nos mercados de peixe eles exibem enormes peças, moem na hora".

A experiência lá foi apresentada para o irmão em forma de Negroni - que com o gelo especial fica quase cremoso -, que se animou em um plano de negócios e na correria administrativa, entre maquinário, escolha do lugar para instalar a fábrica, obra e a infinidade de burocracia para começar a produção.

Já a parte "mão na massa" se desenvolveu com muitas experiências e ajuda de outros fabricantes pelo que já estão na batalha há mais tempo com consultorias desde que material usar até temperatura de manuseio. Nesse quesito, colegas australianos foram de grande ajuda na hora de lidar com as altas temperaturas e o choque térmico.

Um ano e cinco meses depois, a lista de clientes fixos está em 25 restaurantes e bares, como Tantan, Frank, Picco e Caracol. Mas a folha de pagamento segue somente com os dois únicos funcionários.

Lidar com imprevistos também faz parte do negócio e os irmãos enumeram os grandes perrengues até agora: a primeira falta de luz, a descoberta de que não vale a pena ter um estoque gigantesco para um produto frágil e até mesmo um quase curto-circuito - evitado pela quebra santa de um fio no meio do caminho entre os caríssimos freezers e a tomada.

Entre uma lição daqui e dali os autodidatas do gelo entoam o mantra do padrinho: "Se tem solução, não se preocupe, porque tem solução. Se não tem solução, não se preocupe porque não tem solução".

E garantem: "A gente não deixa ninguém sem gelo".

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