Viajante catingueiro

As aventuras do repórter José Raimundo pelo mundo e por um Brasil que o próprio país desconhece

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Quem vê a imagem deste senhor de respeitosas barbas brancas e cara de bancário (uma das suas profissões no início da carreira), nem pode imaginar por onde esse repórter baiano de Riachão do Jacuípe já se meteu.

José Raimundo, 65 anos, já esteve na Tailândia, na Indonésia e em países da Europa e das Américas do Sul e Central, mas gosta mesmo é de sujar as botas de barro no interior de um Brasil.

Em quase uma hora de conversa com Nossa, direto de sua casa em Salvador, viajamos com ele da Chapada Diamantina, na Bahia, ao norte do Peru, onde Zé conheceu uma espécie de Machu Picchu amazônica.

Como repórter, sou catingueiro, meio bicho do mato", se autodefine

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No coração da Bahia

Um dos trabalhos mais marcantes para José Raimundo é a Trilha do Pati, considerada a mais bonita do Brasil, na Chapada Diamantina, no centro serrano da Bahia. Foram cinco dias de uma caminhada exigente de 70 quilômetros de trilhas desafiadoras com subidas íngremes até chapadões e cachoeiras escondidas, entre o povoado de Guiné e o município de Andaraí.

Mas suas viagens são feitas de gente.

"A convivência é impagável. A gente não aprende nos jornais nem nos livros, tem que viver e beber nessa fonte", recomenda o repórter que chegou a conhecer uma família que acolheu a equipe de reportagem e vivia sem energia elétrica, cuja geladeira a gás, carregada por cinco pessoas, levou três dias para chegar até ali.

Aliás, quando tudo isso passar, é lá que Raimundo quer renovar as energias.

"A única coisa que vem na minha cabeça, na hora que puder, é me esconder um pouquinho na Chapada Diamantina, minha segunda morada", revela o repórter que, ao deixar a Globo recentemente, depois de 31 anos de trabalhos em afiliadas da emissora, ainda está "estudando qual caminho pegar para tomar a estrada de novo".

A Chapada Diamantina, por José Raimundo

arquivo pessoal arquivo pessoal

Brasil adentro

O caminho ao certo para retornar à estrada Raimundo ainda não definiu, porém, uma das direções ele já sabe (e não é de hoje).

No início dos anos 90, o repórter entrevistou Sérgia Ribeiro da Silva, a famosa Dadá, raptada por Corisco para viver com ele no bando de Lampião. Naquela época, Raimundo já tinha toda a logística traçada, inclusive aluguel de helicóptero, para voltar com a cangaceira até o Raso da Catarina, na região de Canudos, na Bahia.

Mas a missão de encontrar a máquina de costura de Dadá foi abortada por recomendação médica. A operação seria arriscada para uma mulher de idade avançada, cardíaca e com uma perna amputada por conta do diabetes.

A Dadá não ia morrer por minha causa. Fiquei só com o gostinho de um dia encontrar essa máquina por outros meios. Imagina encontrar a máquina da costureira do grupo do Lampião?"

Dessa região de difícil acesso e ainda pouco explorada turisticamente, Raimundo destaca a Baixa do Chico, "uma das [regiões] mais espetaculares que conheço no Nordeste", onde monumentos de arenito esculpidos pelo vento emergem do leito arenoso do rio, a 60 quilômetros de Paulo Afonso, também na Bahia.

"Dá vontade de ficar ali só contemplando aquelas coisas", relembra.

Baixa do Chico, na região do Raso da Catarina, na Bahia - José Raimundo (750x421)

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Meu herói

Foi lá que conheceu o 'Seu' Lino, em pleno Raso da Catarina, que estava há um ano e meio sem tomar banho por conta da falta de chuva. Seu chuveiro vinha da água da batata do umbuzeiro, mas o entrevistado "não tinha odor de uma pessoa suja, era sábio e de alma bonita".

Durante a entrevista para Nossa, Raimundo define aquele índio Pankararé como o maior herói que já conheceu. Mas três anos depois do encontro, o repórter voltou à região para outro trabalho e o encontrou tomando banho de mangueira, graças a um poço artesiano construído na comunidade, após a reportagem.

E, dessa vez, o herói era o próprio repórter. "São essas coisas que dão prazer para a gente continuar na profissão".

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Aventura amazônica

Fora do seu estado natal, destaca também a Amazônia. Mas não aquela dos passeios clichês que todo mundo faz para ver as mesmas atrações.

Em parceria com o repórter Chico José, "meu irmão mais velho", Raimundo fez uma viagem de dois meses pelo Rio Amazonas, dividida em três etapas.

"Foi único. Só navegando nele para ter ideia do poder e da grandeza daquele rio", relembra sobre esse especial em que o colega saiu do Peru para ver a mais recente nascente do Amazonas. Já Raimundo subiu o rio até se encontrarem em Tabatinga, na tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru.

Apesar dos encontros emocionantes em aldeias indígenas que lutam para sobreviver em uma região tão afastada, o repórter não esquece o desconforto das longas travessias e do excesso de mosquitos. "Tem uns perrengues para enfrentar que nos ensinam bastante", completa.

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A outra cidade perdida

No exterior, seus olhos afiados para o diferente o levaram também ao norte do Peru, onde conheceu os Chachapoyas, grupo anterior aos incas que viveu na Amazônia peruana.

"Desbravamos uma área pouca explorada pelo turismo do Peru porque tudo é canalizado para Machu Picchu. Subimos montanhas imensas, andamos por caminhos incas e visitamos cemitérios históricos, onde ainda existem múmias", relembra Raimundo.

João Machado/Divulgação João Machado/Divulgação

E veio a pandemia...

Com mais de quatro décadas de estrada, esse repórter está sem viajar desde fevereiro do ano passado, quando percorreu os sertões nordestinos para gravar um Globo Repórter especial. Logo depois, saiu de férias e, quando retornou, tudo tinha parado por conta da pandemia de coronavírus.

José Raimundo só não parou de contar boas histórias, daquelas que nos levam para um Brasil que muita gente não imaginava existir.

Eu precisava mostrar um sertão mais alegre, que não fosse tão devastado como a gente costuma ver"

Assim explica Raimundo, cuja equipe de reportagem chegou a ficar impedida de seguir viagem por conta das estradas bloqueadas pela chuva, em pleno sertão da seca e das más notícias.

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Apesar de angustiante, segundo suas próprias palavras, esse momento de pandemia é a hora para exercitar a paciência e para a convivência intensa com a família. Entre risadas, o repórter lembra que sua esposa sempre reclamou que ele era mais casado com a televisão do que com ela.

E foi desse casamento (com a TV) que o baiano desenvolveu uma das suas marcas jornalísticas: as denúncias de crimes ambientais e a preocupação pela preservação da natureza, cujos especiais sobre a destruição da Mata Atlântica, em 2004, lhe renderam dois prêmios jornalísticos.

Para Raimundo, o turismo pode ser um aliado importante no despertar de uma consciência ambiental.

A pandemia está permitindo que as pessoas fiquem mais alertas, para que abram os olhos em relação a isso. Esse mundo sustentável se impõe porque não há outro caminho"

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O repórter, que já chegou a ser expulso de uma serraria no Pará por um madeireiro armado, acredita que no Brasil o assunto vai na contramão de todas as agendas internacionais:

Enquanto a boiada vai passando sem dó, sem pensar no futuro e nas próximas gerações"

No pós-pandemia, acredita que o turismo no país deve se beneficiar por conta da demanda reprimida causada pelo fechamento das fronteiras. "A opção vai ser o Brasil porque o Brasil vale a pena de qualquer jeito".

Enquanto esse dia não chega, Raimundo vai sonhando em voltar para o Pantanal, uma região que quer explorar melhor, sobretudo depois de tudo que aconteceu, e que não conhece " do jeito que um jornalista tirado a aventureiro deveria conhecer".

"Quero conviver com as pessoas, conhecer a vida pantaneira e mergulhar na viola de Helena Meireles", planeja o repórter.

O Jalapão, a região árida do Tocantins alimentada por cachoeiras e rios potentes, também é um dos destinos que Raimundo não conhece e que está nos seus planos futuros.

Eu quero conhecer muita coisa, ainda tenho lenha pra queimar"

José Raimundo

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Viagem em família

Se no jornalismo Raimundo passou as últimas décadas correndo contra o relógio, as viagens em família são o momento de desacelerar.

Essa rotina de viver viajando acaba priorizando a estrada e sacrificando a família que, nessas horas, ficam em segundo plano"

Por isso, nas férias ou em folgas entre uma reportagem e outra, o repórter faz questão de pegar a estrada (olha ela aí de novo na vida dele) em direção a destinos distantes e acompanhado da família.

Márcia é a esposa e mãe do Alison e do caçula Pedro. Mas quando o assunto é viajar, é ela quem faz tudo acontecer. "Ela é a produtora das nossas viagens, quem faz o roteiro e todas as reservas. Ela é muito boa nisso também", descreve, orgulhoso.

Um dos sonhos antigos da trupe era a Tailândia, uma viagem que começou pela frenética Bangkok ("uma cidade cheia de vida e povo acolhedor"), e seguiu para o litoral, em "praias cinematográficas" como Phi Phi, conjunto de ilhas no oceano Índico.

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Não muito longe da faixa de areia que se popularizou como cenário do filme 'A Praia', com Leonardo DiCaprio, a família seguiu para Railay, "outro lugar incrivelmente bonito, com mar de águas calmas, incrivelmente azuis e ótima temperatura".

Dali, os quatro seguiram à vizinha Indonésia para realizar um desejo antigo do filho Pedro, que é surfista e sonhava em pegar as longas ondas de Uluwatu, em Bali.

"Ficamos de babá do caçula", brinca Raimundo, lembrando que o gosto pelo esporte é uma inspiração do filho mais velho, que também é surfista.

Para Raimundo, viajar com a família é mais do que compartilhar momentos únicos, "é sair de casa e fortalecer as relações com a esposa e os filhos".

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