A outra Dubai

Longe do neon e do futurismo da zona turística, a região histórica mostra o "lado B" do emirado mais famoso

Mari Campos Colaboração para Nossa, de Dubai Getty Images/iStockphoto

Dubai ganhou fama no turismo com seus arranha-céus futuristas, shows de luzes, imensos letreiros em neon, gigantescos shopping centers, restaurantes servindo pratos com pó de ouro e hotéis que clamam ser os mais luxuosos do mundo. Mas nem só de bling-bling vive o emirado. É longe de tudo isso que fica talvez a mais interessante de suas facetas: a Dubai antiga, cor de areia do deserto, com prédios baixinhos e ruelas estreitas e barulhentas, ainda pouco frequentada pelos turistas.

O coração da antiga vila de pescadores que originou Dubai, à beira d'água, concentra a história de seu surgimento: Al Fahidi e Deira, nas duas margens do riacho, reúnem as principais atrações históricas, arquitetônicas e culturais da chamada Old Dubai.

Para atrair mais visitantes a esse pedaço de Dubai ainda autêntico e tão diferente dos bairros mais turísticos, novos investimentos imobiliários estão levando anualmente mais hotéis, restaurantes, bares, lojas e cafés para lá.

A região é fartamente atendida por táxis, carros por aplicativo e transporte público, com duas estações de metrô — Al Fahidi e BurJuman — nas redondezas. E alguns receptivos locais passaram a oferecer tours específicos pela região — mostrando aos turistas como, apesar de todo clima de "Vegas das arábias" que Dubai vendeu ao mundo, o novo e o antigo convivem realmente lado a lado em vários pontos do emirado.

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Getty Images/iStockphoto O bairro histórico de Al Fahidi ainda preserva parte das primeiras construções do emirado.

O bairro histórico de Al Fahidi ainda preserva parte das primeiras construções do emirado.

O antigo autêntico...

A Dubai antiga se espalha pelos dois lados do Dubai Creek. Um bom passeio pela região geralmente começa pelo bairro histórico de Al Fahidi, que ainda preserva parte das primeiras construções do emirado. Considerado um dos maiores patrimônios históricos de Dubai, estão ali os resquícios de quando Dubai era uma cidade amuralhada, no início do século 19, como o Forte Al Fahidi e torres eólicas tradicionais, construídas em pedra, gesso, madeira de palmeira e sândalo.

Algumas construções históricas foram restauradas recentemente, transformando o bairro numa sequência de construções de coloração areia à beira d'agua. A revitalização de Al Fahidi deu tão certo que inspirou também um grande empreendimento imobiliário que se instalou nas proximidades, Al Seef, promovendo certa continuidade estética nesta margem do creek.

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Trecho de Al Seef, bairro que reproduz um souq tradicional e abriga lojas, restaurantes e cafés

... e o antigo para turista ver

Inaugurado no final de 2017, o bairro de Al Seef ocupa quase dois quilômetros do Dubai Creek com investimentos milionários. O bairro planejado criou ruelas e encantadoras calçadas com edifícios construídos em arenito, hoje ocupados por inúmeras lojas, restaurantes e cafés, reproduzindo ali a estrutura de um souq tradicional — mas extremamente asséptico e organizado. Um passeio tranquilo e extremamente agradável, dia e noite, para se fazer a pé — uma raridade em Dubai.

Vale observar, entretanto, que a maior parte das roupas, objetos de decoração e souvenires em geral vendidos ali são fabricados na Índia, uma das mais importantes parceiras comerciais de Dubai. O novo bairro, paraíso dos influenciadores digitais por sua cenografia impecável (até a iluminação noturna imita as lamparinas de outros tempos), tem hoje também uma das mais fotografadas franquias da Starbucks do mundo.

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O investimento deu tão certo que hotéis de diferentes bandeiras do grupo Hilton Hotels se instalaram por lá. O Al Seef Heritage Hotel, da bandeira Curio Collection, por exemplo, espalhou seus quartos por diversos (e adoráveis) edifícios de dois andares do bairro, inspirados nas construções antigas de Dubai do lado de fora — mas cheios de contemporaneidades e tecnologia do lado de dentro.

Getty Images/iStockphoto As abras, barquinhos tradicionais, levam os turistas de uma margem a outra em Old Dubai por R$ 1,50

As abras, barquinhos tradicionais, levam os turistas de uma margem a outra em Old Dubai por R$ 1,50

De barco entre as margens de Old Dubai

A Dubai Clocktower — ou Deira Clocktower — é a torre do relógio convertida em monumento histórico no cruzamento da Umm Hurair Road com a D89, simbolizando o rápido desenvolvimento comercial de Dubai nas últimas décadas. A torre marca também a primeira travessia de terra possível entre os dois lados do Creek, Deira e Bur Dubai, através da ponte Al Maktoum.

No emirado em que tudo é tão caro, por apenas 1AED (cerca de R$1,50 hoje) qualquer morador ou turista pode embarcar em um dos muitos barquinhos tradicionais (abras) que atravessam as águas do Creek de Bur Dubai até Deira, partindo constantemente de quatro estações diferentes na região. Atravessar o Creek numa dessas embarcações leva meros minutos e é um dos passeios mais gostosos de Dubai — e, seguramente, o mais barato.

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As abras param em Deira, a poucos passos do famoso Gold Souq. O mercado do ouro, largamente divulgado em redes sociais, revistas e programas de televisão, é um dos mais tradicionais e antigos do emirado.

A visita vale, nem que seja pelo prosaico da coisa: o maior anel de ouro do mundo segundo o Guinness Book está lá, assim como tops, vestidos e até máscaras faciais feitos de ouro. Tudo largamente exposto aos transeuntes, com acesso tranquilo e liberado na maior parte das lojas do complexo.

Divulgação/Visit Dubai Entre as ruelas e ruas da Old Dubai, os turistas ainda são poucos circulando

Entre as ruelas e ruas da Old Dubai, os turistas ainda são poucos circulando

De souq em souq em Old Dubai

Mas existem outros souqs ainda mais interessantes para visitar e entender mais sobre o modo de vida da população de Dubai longe dos shows de fontes e luzes dos bairros mais turísticos. Muitas vezes é preciso atravessar um souq para chegar a outro que buscamos, o que acaba sendo geralmente uma bela surpresa.

E a caminhada entre eles pode ser deliciosa, por entre um emaranhado de ruelas e ruas sinuosas e ruidosas, cheias de lojas e gente, e apinhadas de carros nas partes mais movimentadas. Os moradores andam geralmente apressados, dia e noite, e os turistas ainda são poucos por ali. Mas olho vivo no distanciamento social: mesmo em tempos de ômicron, máscaras são bastante raras entre os vendedores.

Divulgação/Visit Dubai
Vendedores do souq em Al Ras, parte da antiga região de Deira

Dependendo do horário, podemos passar por grandes fluxos de residentes muçulmanos dirigindo-se de maneira quase coreografada para uma das mesquitas da região, enquanto o muezzin (a pessoa encarregada de anunciar em voz alta o momento das cinco preces diárias) faz o comovente chamado para a oração nos alto-falantes. Nas ruas estreitas, às vezes só identificamos a entrada de uma mesquita ao ver uma escadaria repleta de pares de sapatos e chinelos enfileirados.

Em Deira, próximo ao mercado do ouro, o imperdível Spice Souq, destinado às especiarias, é das experiências mais aromáticas e sensoriais oferecidas pelo destino. Enquanto a gente explora diferentes e coloridíssimas barracas tomadas por enormes cestos de temperos de todo tipo, é comum vendedores compartilharem, com muitos gestos, as melhores maneiras de utilizar cada um deles e até algumas receitas de família. O açafrão iraniano é anunciado por toda parte. Mas há ainda por ali o souq dos perfumes, o souq dos calçados, o souq dos eletrônicos...

Temperos, tecidos e mais

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No bairro histórico de Bur Dubai, do outro lado das águas do Dubai Creek, fica o Textile Souq, que guarda uma infindável seleção de sedas, enormes bobinas de algodão e outros tecidos cuidadosamente bordados. Também chamado de Old Souq, o souq dos tecidos é famoso principalmente pelos alfaiates que fazem todo tipo de traje sob medida, inclusive adornos para a cabeça. Mas, hoje em dia, são muito comuns também por lá as peças para pronta entrega, com destaque para os kaftans (vestidões) e túnicas.

Bur Dubai guarda também o Meena Bazaar, que reúne tecidos mais tradicionais, temperos, joias e até artesanato, tudo no mesmo lugar. Localizado entre as ruas Al Fahidi e Khalid Bin Al Waleed, é também conhecido como "Little India", já que muitos dos comerciantes das coloridas lojas locais são indianos.

Getty Images/iStockphoto A mesquita de Jumeirah é aberta a turistas em horários específicos e tem visitas guiadas e gratuitas

A mesquita de Jumeirah é aberta a turistas em horários específicos e tem visitas guiadas e gratuitas

Esticada à mesquita aberta a turistas

Um bom passeio pela Dubai antiga pode ultrapassar um pouquinho os limites geográficos da região demarcada como Old Dubai até chegar à bela Mesquita de Jumeirah, um pouco ao sul, também aberta à visitação turística.

Embora tenha sido construída apenas em 1976, ela imita o estilo tradicional fatímida e foi transformada também em uma atividade-chave do programa "Portas Abertas, Mentes Abertas" do turismo de Dubai.

Com imponentes mirantes gêmeos (que se acendem ao pôr do sol) emoldurando a grande cúpula central, a mesquita de Jumeirah é aberta a turistas em horários específicos: às 10h e às 14h, exceto à sextas-feiras.

As visitas são gratuitas e guiadas e buscam ensinar um pouco sobre a história da fundação de Dubai, a vida nos emirados ontem e hoje, e o próprio Islã. Com duração aproximada de 75 minutos, contam ainda com café árabe e tâmaras cortesia ao final e incluem a visita a uma pequena galeria de arte anexa também.

Royal Geographical Society via Getty Images Como era, em 1937, a região do porto da área hoje conhecida como Old Dubai

Como era, em 1937, a região do porto da área hoje conhecida como Old Dubai

Como Dubai começou

Boa parte da história de Dubai é deserto e mar. O local já foi um vasto manguezal que secou através dos séculos e se tornou habitável. A área que agora conhecemos como Jumeirah, com seus luxuosos hotéis e restaurantes à beira-mar, já foi uma estação de caravanas da rota comercial que ligava Omã ao Iraque.

Há pouquíssimos registros sobre o período pré-islâmico nesse pedaço da península arábica. A primeira menção a Dubai foi registrada somente em 1095, pelo geógrafo árabe-andaluz Abu Abdullah Al Bakri; foram encontrados também alguns registros de comerciantes venezianos no século 16.

O primeiro grande marco do destino veio apenas nas primeiras décadas do séculos 19, quando membros da tribo Bani Yas, que detinha o poder político em Abu Dhabi, se estabeleceram na região que hoje é chamada de Old Dubai, formando uma pequena vila de pescadores no Dubai Creek. Seu líder Maktoum bin Butti declarou a independência de Dubai em relação a Abu Dhabi em 1833 bem ali.

A dinastia Al Maktoum tornou o emirado importante porto comercial no golfo Pérsico, fez alianças com o Império Britânico, protegeu o território de ataques do Império Otomano e, até hoje, mesmo com todas as constantes mudanças pelas quais passou o emirado, continua a governar Dubai.

Gamma-Rapho via Getty Images Imagem de Dubai em 1977: crescimento embalado pela descoberta de petróleo

Imagem de Dubai em 1977: crescimento embalado pela descoberta de petróleo

Cria-se a Dubai do luxo

Até 1950 a população local ainda era de apenas 5 mil habitantes. Foi a descoberta de petróleo em 1967 que fez o destino se desenvolver rapidamente. Em 1971 surgem os Emirados Árabes Unidos e o rápido crescimento financeiro da região levou a um aumento exponencial de sua população.

Hoje, os emirati — como são chamados localmente os nativos dos emirados árabes — constituem pouco mais de 10% da população da Dubai. São os expatriados das mais diversas partes do mundo, boa parte deles hoje trabalhando com turismo, que compõem a maioria da população local.

O sheikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum deu continuidade ao projeto iniciado pelo pai (sheikh Rashid bin Saeed Al Maktoum, falecido em 1990) para tornar Dubai uma grande potência comercial. Com um adendo importante: decidiu transformar o emirado também em uma potência turística.

Sua companhia aérea local, Emirates, que conta com ampla malha aérea de conexões, consolidou Dubai primeiro como sinônimo de glamour (há detalhes em dourado até nos assentos dos vasos sanitários das aeronaves). Depois, como um excelente destino de stop over (parada rápida de alguns dias) para o turista a caminho de outros destinos longínquos.

Hoje, com indústria hoteleira em franca expansão e atrações turísticas inauguradas quase que mensalmente, Dubai faz investimentos bilionários no mundo todo para se firmar como um destino de férias por si só. Novos mirantes, museus, shoppings e parques de diversões são inaugurados constantemente. Além disso, a EXPO2020, que termina em março deste ano, movimentou bilhões para atrair ainda mais turistas e negócios para o mais famoso emirado árabe.

Getty Images/Johner RF Vista de Old Dubai com a parte turística e mais conhecida ao fundo

Vista de Old Dubai com a parte turística e mais conhecida ao fundo

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