'Menina superpoderosa' das massas em SP, Bia Limoni toma rédeas da cozinha

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"Somos meninas", diz Bia Limoni entre risos. Aos 34 anos, a chef é, obviamente, jovem e, indiscutivelmente, jovial, inclusive em uma ansiedade evidente. "Como é difícil abrir restaurante", brinca.
Ainda assim, acumula experiência e competência suficientes para qser um nome na gastronomia em São Paulo, além de estar pronta para alçar outros voos — segredados numa cozinha de produção nos bastidores do Pipo, restaurante no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo.
Um destes voos já é como a protagonista da própria história e outro, com nome, endereço e previsão de abertura, ao lado de um veterano de peso.
Se engana, porém, quem acha que tudo começa em sua primeira casa, o badalado e premiado Shihoma Pasta Fresca, na Vila Madalena.

A cozinha de Bia brota na sua Araraquara e em Santos, onde estava sua avó Cecília — essencial personagem, como se vê ao longo da conversa.
Desde pequena, sempre tive o sonho de ser cozinheira. As primeiras memórias que eu tenho de vida da minha avó e da minha mãe na cozinha. De virar a cozinha do avesso fazendo um bolo.
De um lado Limoni, a comida ítalo-brasileira de muitas mulheres na cozinha, do frango com polenta, macarronada e nhoque. Do lado Freitas, portugueses no litoral paulista, com muita bacalhoada, frutos do mar e o caldo verde que faz Bia abrir um sorriso imediato.
"Eu acho que tudo isso vem do prazer que eu tenho em comer", acredita.
A formação formal, porém, não foi de gastronomia, mas publicidade. E os quatro anos de curso em São Paulo não foram qualquer martírio. A carreira no marketing, porém, não dava brilho no olhar.
"Eu gostava, mas eu não via muito o propósito, o sentido. Pra mim era só uma coisa que eu estava em situação de fazer. Era um emprego."
Um jantar mudou tudo

Em 2018, foi demitida e convidada pelos pais a viajar até Nova York visitar o irmão, que morava na cidade e trabalhava em um banco de investimentos.
Quando voltasse, mandaria currículos, indicou o pai.
"E essa frase do meu ficou na minha cabeça. Não é isso que eu quero fazer. E eu lembro na época de ter conversado com a minha avó".
Mesma avó — a Cecília —, que deu à neta, na formatura, um presente e um cartão que dizia: "não se esqueça que você pode se fazer e ser o que você quiser".
A neta seguiu o conselho e foi fazer e ser o que queria.
Fui comer num restaurante chamado Estela e pirei. Nunca tinha visto, experimentado, provado uma comida como aquela. Mexeu muito comigo, descreve.

Sem contar para os pais, voltou ao restaurante nos dias seguintes e, na terceira tentativa, explicou ao chef uruguaio Ignacio Mattos sua catarse gastronômica e pediu para aprender a fazer aquele tipo de comida.
Sem ter nenhuma experiência na cozinha profissional, "com um sonho e uma passagem", uma faca emprestada, sapato confortável e um boné para o cabelo, foi aceita e agora "só" faltava o mais difícil.
Contei para os meus pais, que ficaram reticentes, e lembro da sensação que eu senti desde o primeiro dia. Era naquele ambiente caótico, louco, insano e amedrontador que eu queria estar, decidiu.

Com passagem trocada e pais pouco a pouco convencidos, foram quatro meses morando no sofá do irmão.
Cozinhas de mulheres
Após um mês no Estela, Bia conheceu a cozinha do Cosme. Por um curto período, mas intenso, a nova cozinheira estava em contato com a mexicana Daniela Soto-Innes, a mais jovem chef nomeada Melhor Chef Feminina do Mundo pelo World's 50 Best Restaurant e comandante de uma cozinha de 30 pessoas.

Ela tinha uma autoridade e as pessoas a respeitavam muito. Era uma exigência com humanidade. Admirei muito ver aquela mulher naquela posição e fazendo da forma como ela fazia, lembra o cenário.
De lá, Bia foi para a cozinha de Daniel Burns — canadense que foi "criado" no Noma e que chegou a comandar o Corrutela de César Costa, em São Paulo.
"Ali eu fiz meus primeiros amigos, de fato, e fiquei mais tempo, dois meses. Foi um verão muito feliz e descobri essa coisa da gastronomia na minha vida", resume a passagem pelo primeiro restaurante a fazer menu de degustação harmonizado com cerveja.
Na volta ao Brasil, a única certeza era de onde queria estar e assim seguiu com mais estágios no Ema de Renata Vanzetto, e, depois, no Clandestino de Bel Coelho.
Após um ano de "comida fantástica feita por uma equipe muito pequenininha em um trabalho intenso", Bia foi contratada e agora oficialmente cozinheira.
Mas Nova York ainda tinha muito a ensinar.
Precisava ter uma vivência, de novo, lá. Trabalhar num restaurante grande, pauleira, para aprender a ser rápida, desenvolver outras habilidades para além de saber executar um prato, conta.
Agridoce é a vida
A decisão, porém, seria muito mais difícil quando Cecília, a avó-coragem, foi diagnosticada com um câncer agressivo.
Entendi que estava abrindo mão de passar aquele último ano da vida da minha avó com ela, mas ela me apoiou muito em ir em paz. Sempre tive essa culpa, desabafa.
De volta ao Estela de Ignacio, agora com visto e contrato, não tinha mais a tranquilidade de estar em experiência, como no estágio.
Foi um período de adaptação bastante difícil, trabalhava 14 horas por dia e ganhava menos que todo mundo, lembra.

Entre Estela e Flora Bar, também de Ignacio, no subsolo do Met Breuer, o que era pra ser seis meses, virou um ano. Na hora de voltar ao Brasil, a decisão foi ficar e o namoro com o americano Joey Lim virou casamento.
No limbo entre visto de trabalho e permanente, Bia não podia sair dos EUA e viu, de longe, a avó partir. "No fim, mesmo sem autorização, vim para o enterro dela. Ela foi a pessoa que mais me sentiu e eu não ia me despedir da minha avó?", se emociona.
De volta a NY, foi transferida a contra-gosto para mais um negócio de Ignacio, o Café Altro Paradiso, onde, ironicamente, teve seu primeiro contato profissional com a culinária italiana e o que definiu sua marca: massas feitas do zero.

Na cara e na coragem, porém, Bia pediu mais ao chefe uruguaio e queria ser treinada para a subchefia. "Não rolou e aquilo foi uma decepção para mim. Decidi sair."
Nova York ainda seria palco para a experiência no Chef's Club, um restaurante de enorme estrutura, com uma equipe a disposição de chefs que trabalhavam por temporadas de três meses.
"Trabalhei com chefs diferentes: dois irmãos israelenses, um italiano e uma americana. Muito bacana. Aí, enfim... veio a pandemia e tudo fechou".
De pão e massa
Sem perspectivas em uma Nova York e um mundo em suspenso, Bia voltou ao Brasil com Joey, mas sem Olive - uma cachorrinha que acabou adotada por uma amiga de cozinha na impossibilidade de trazê-la nas incertezas do momento.
A gente voltou no 20 de março no último voo para o Brasil antes das fronteiras serem fechadas, recorda.
Morando com os pais em Araraquara, a solução para os dois cozinheiros foi fazer pão e quase um ano depois estariam buscando um imóvel para montar uma padaria na cidade.
Diretamente de São Paulo, Marcio Shihomatsu tinha outros planos para o casal.
Ainda em 2019, o hoje sócio do Shihoma já havia procurado Bia com o desejo de abrir um restaurante italiano na capital paulista com ajuda de Bia. "Mas naquela época eu nem sonhava que eu ia voltar para o Brasil", diz.
Com a pandemia, porém, as negociações foram reabertas. Desta vez, com Joey no pacote. "Aí apresentei os dois e foi match instantâneo", lembra.

No fim de 2020, surgia o Shihoma como dark kitchen, para entrega de massas cruas. Seis meses depois, surgiu o restaurante na Vila Madalena, que criou vida própria em pouco tempo.
Depois de um ano, mais ou menos, comecei a ter mais confiança no meu trabalho e senti que tinha uma equipe que me respeitava. Foi aí que comecei a criar mais também e ter mais liberdade para isso, afirma.
Com Joey agora mais de olho na Deli e Márcio no administrativo, Bia estava cada vez mais dona da cozinha.
"É uma virada de chave. Mas a gente tem essa coisa de se questionar o tempo inteiro, porque estava com os dois sempre comigo. Pensava 'será que eu consigo?", lembra.
Depois de conquistar seu espaço depois de quatro anos e ver que a indústria também via seu papel, Bia percebeu que faltava mostrar sua cara, agora solo, para o público.
Até minha saída, eu ouvia coisas como 'mas você é a chefe de cozinha do Shihoma?', 'como se leva o nome de um dos sócios?'. Comecei a entender que, talvez, fosse o momento de buscar outras coisas, algo meu, diz.
Muito trabalho, turnos lotados e reconhecimentos depois, Bia anunciaria sua saída da cozinha da casa em agosto desse ano.
"Tudo que está acontecendo na minha vida agora e que ainda vai acontecer, é produto do Shihoma. Tenho muito orgulho dessa construção a seis mãos. Ninguém sabia o que estava fazendo, mas, juntos, a gente sempre se ajudava e se encontrava", declara.
Massa e brasa

No Shihoma, Bia criou definitivamente seu estilo, inspirado lá na primeira experiência do Estela.
É uma cozinha que aparenta ser muito simples, com poucos ingredientes, mas tem uma construção de camadas e de sabores por trás, descreve.
Sucessos da chef, como o arroz de tinta de lula, levava três tipos de caldos diferentes. Já a salada de laranjas, avelã, cebola, erva e queijo tinha cada pedacinho temperado de uma forma.
Para o novíssimo Lina, a ser inaugurado ainda em outubro no bairro do Itaim Bibi, a lógica da cozinha segue a mesma, com acréscimos: a brasa, sociedade e parceria de Felipe Bronze. E Bia com os dois pés na porta na defesa de suas massas únicas.

A chef agora faz parte do "Bronze+", uma plataforma criada pelo chef carioca que funciona como uma incubadora e aceleradora para jovens chefs e novos projetos gastronômicos.
"Tomei a decisão de sair do Shihoma porque o cavalo, às vezes, só passa uma vez, sabe? A pessoa que é o Felipe, com o prestígio e a bagagem que ele tem... achei incrível", avalia.
Os primeiros a darem pitaco na iniciativa foram, claro, os pais de Bia. Agora pais de chef, apoiaram.
Ter uma equipe por trás, não ter que me preocupar com a compra da louça, da taça, da bebida, do azulejo, me permite ter todo o processo criativo que, no fim das contas, é o que eu gosto de fazer. Tô me sentindo uma pintora, uma artista. Ai, isso é lindo, abre o sorriso.
O nome Lina, curiosamente, surgiu dos tempos de Shihoma.
"O Márcio pensava em mudar o nome, porque até então ele fazia só na casa dele e tinha receio de que seja difícil as pessoas associarem o sobrenome japonês à comida italiana".
Na época, Bia e Joey concordaram e começaram a sugerir possíveis nomes. Um deles era Lina - de "semolina", a farinha favorita de Bia.
E sempre gostei de nomes femininos para restaurante, até porque Estela me marcou muito. Tem um lugar forte no que eu penso sobre comida. Mas no fim, não trocamos, relembra.
As coincidências e semelhanças param por aí: Lina não será só de massas (que serão sem amarras de tradição) e, pela primeira vez, Bia poderá trabalhar com brasa em carne, porco, peixes, e servir sob a divisão à italiana de antepastos, primeiro e segundo prato.
"Tô super animada em pensar na massa como um veículo de molhos e criações possíveis", entrega, citando que haverá, por exemplo, ragu com a costela do Pipo.
Entre a delicadeza de suas massas disruptivas e a potência da brasa, Bia está em busca de identidade e equilíbrio. Com os olhos brilhantes de emoção, ela respira fundo. Será que vai rolar? Já rolou.



























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