Chef do melhor do Brasil: 'Não vou botar toalha branca na mesa por prêmio'

Estar entre os onze lugares do balcão de frente para a cozinha do Lasai é um privilégio. Pudera: ele é, hoje, considerado o melhor restaurante do Brasil e um dos mais destacados do planeta, somando as duas estrelas Michelin e a 28º posição do World's 50 Best Restaurants 2025.

Ainda assim, se você nunca tiver visto Rafa Costa e Silva na vida, talvez nem imagine a magnitude do profissional à sua frente tamanha a discrição que o chef duas facas de Best Chef tenta manter.

O chef circula, corta um dos (deliciosos) pães da casa, orienta aqui, acrescenta de lá... e um olhar atento para a prateleira de destilados revela um quadro: uma mini camiseta rubro-negra emoldurada.

"Não tenho nada favorito nessa vida. Só meu filho". E o Mengão? "Ah, o Flamengo, óbvio".

É nessa informalidade que Rafa vive e quer viver, como revela em um papo com Nossa. Não no Lasai, pois lá a vida é cronometrada, mas na Serra Fluminense, próximo a Petrópolis, para onde Rafa levou um lado ainda desconhecido de sua cozinha ao Bonaccia Osteria, na Casa Marambaia.

O carioca "da gema", como dizem, tem um pedaço da alma na Itália e tijolos de sua trajetória em Nova York, Errenteria (País Basco) e numa infinidade de carimbos no passaporte. E tudo isso ele conta como se não fosse meio fantástico. Discreto, afinal.

Com tempo, irmão

Não é que eu não goste de falar e aparecer. É que pra mim as coisas sempre foram muito práticas, explica.

Desde o começo do restaurante, em 2014, em outro endereço e com mais lugares que hoje, tudo funcionava da cozinha para dentro com Rafa e, para fora, com sua esposa a americana de origem mexicana Malena Cardiel. "Não conseguia falar, entende?".

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Equipe do Lasai em ação
Equipe do Lasai em ação Imagem: Juliana Simon

Com braços-direitos de peso, como a sommelière Maíra Freire, os chefs Marcelo Malta, Vinícius Maciel e Douglas Franco e a mestre pastaia Marina Guazelli, no Bonaccia, dá para respirar melhor.

O que eu faço hoje em dia, de estar aqui hoje numa terça-feira, durante a semana com funcionamento normal dos restaurantes, antes da pandemia, eu nem pensava. Eu nunca tinha feito isso na minha vida.

Apesar de falar que não tem memória boa, recorda que não deixou de ir ao Lasai nenhum dia entre 18 de março de 2014, na abertura, e 15 de abril de 2015, quando foi convidado para um evento em Portugal. Murphy (aquele da lei), claro, operou suas sacanagens.

Naquela época, tinham acabado de sair as Estrelas Michelin no Rio e em São Paulo. Aí o PROCON lá do Rio resolveu fazer uma fiscalização nos restaurantes estrelados. E foram no nosso e acharam queijo artesanal, presunto yaguara e jogaram muita coisa fora. A gente saiu na capa do jornal. Depois disso, fiquei um tempão sem sair porque me deu um trauma, relembra.

Rafa no Lasai
Rafa no Lasai Imagem: Juliana Simon
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Hoje, Rafa confia seus negócios a fiéis escudeiros. Alguns com seis, oito, 10 anos de casa. "Eu até falo que de vez em quando, quando eu entro no serviço, eu atrapalho um pouco", diz. Hoje em dia, tudo fica muito mais "lasai" (que significa "tranquilo" em euskera).

Uma onda vai, outra onda vem

Antes de chegar ao País Basco, porém, vamos à Itália do avô de Rafa, cujas fotos de infância e vida adulta se voltam para os fundos do Bonaccia, onde uma comprida mesa recebe hóspedes e visitantes da Casa Marambaia.

Sala de jantar com foto do avô de Rafa na infância e vida adulta
Sala de jantar com foto do avô de Rafa na infância e vida adulta Imagem: Juliana Simon

Mas não confunda essa referência com qualquer romantismo no chef. "Não tenho nenhuma memória afetiva de cozinha. Meu avô nunca foi de cozinhar, nem minha avó. A única coisa que eu lembro que ela fazia é o que a gente serve aqui no café, os grostolis."

Por isso, da infância até o comecinho da vida adulta, trabalhar em cozinha nem passava por sua cabeça. Formado em administração e com cargo de banco a operadora de telefonia, a gastronomia surgiu, primeiro, no desejo de ter um bar "para receber os amigos, ficar bêbado e comer qualquer coisa".

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Fui fazer gastronomia, mas nem pretendia me formar. Só queria saber o básico para pessoas não me roubarem. Mas uma coisa foi me levando a outra e quando vi, já tava dentro, gostando e nunca mais saí.

Nesse resumão do chef, porém, há muita história: a chegada a Nova York "sem amigo e falando inglês muito mal", o conforto e a diversão na cozinha com os colegas latinos, a informalidade dos bastidores ("é muito difícil você me ver de blazer ou algo assim"), quatro meses que viraram dois anos, depois três, a ilegalidade.

Mugaritz (País Basco, Espanha)
Mugaritz (País Basco, Espanha) Imagem: Reprodução/Instagram

"Um cara me propôs fazer todos meus papéis pra eu ficar por lá. E quase topei, mas nunca tinha ido pra Europa, nem de férias. Eu nunca tinha ido. Mandei currículo para um monte de restaurante para ser estagiário onde quer que me aceitassem. E o Mugaritz foi um dos primeiros a me responder", lembra.

Já casado com Malena, que também foi aceita no restaurante de Andoni Luis Aduriz para o salão, Rafa partiu para o País Basco. A ideia inicial era ficar três meses e, depois, viajar para França e Portugal. Nada disso: seriam cinco anos de casa que mudariam a vida do chef.

Entrei numa cozinha que eu nunca tinha visto na vida, era muito diferente. Em Nova York, trabalhei com muita correria, negócio meio trevas. Não tem nenhuma história dessa de jogar panela, nem nada que o pessoal gosta de conta, mas saía com a jaqueta molhada de suor todos os dias, conta.

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Na genial casa basca, porém, era um cozinheiro por cliente, uma cozinha que tinha tudo do bom e do melhor e foi o próprio Andoni que pediu que o casal ficasse ("mais ela que eu"). Ambos toparam e de cozinheiro, rafa subiu a subchef e, nos últimos dois anos, chef.

"Eu não teria saído quando eu saí. Era um trabalho dos sonhos. Mas a minha mulher não gostava nem um pouco de lá", revela. O problema para a texana não era o trabalho, mas o clima de San Sebastian: no verão, calor e praia. Mas sete longos meses de chuva e frio.

Ela queria ter ido antes, mas combinamos de ficar mais um ano e voltamos a Nova York com uma proposta. Não funcionou, fomos para o Texas. Não ia dar certo lá também. Então viemos para o Rio.

Chique sem querer

Lasai em 2019
Lasai em 2019 Imagem: Divulgação

"Fizemos um projeto de um restaurante, um pedaço de papel mesmo e aí deu certo. Mas era muito mais informal do que acabou saindo. Acho que até pela carência de restaurante um pouquinho mais ajeitado no Rio naquela época, 11 anos atrás, acabaram levando mais a sério do que realmente era pra ter levado", avalia.

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Hoje, levado ainda mais a sério, cobra e lota o balcão em menu-degustação e harmonização a quase R$ 2 mil.

Não só os cariocas, como a história comprova. Em 2015, o Lasai estreou na lista latina do 50 Best em 16° lugar, sendo reconhecido como "melhor nova entrada".

Com isso, conquistei alguns inimigos. A gente tinha acabado de abrir, era eu e minha mulher e mais três ex-Mugaritz. Era muito mais improvisado do que as pessoas pensam. Quando eu recebi a carta do 50 Best, pra mim, era impensável, descreve.

Na cerimônia, vendo que chamavam ao palco nomes como Helena Rizzo, Rodrigo Oliveira, Thiago Castanho, achou que tinham sido esquecidos. "Quando chamaram a gente em 16°, foi muito absurdo pra gente. Isso fez com que o nosso restaurante mudasse muito pelo público e pela crítica", recorda.

Lasai atualmente
Lasai atualmente Imagem: Eduardo Anizelli/ Folhapress

Começou uma verdadeira invasão estrangeira. Na época, sul-americanos de todos os cantos. Depois, europeus. E hoje, com 80% dos comensais de fora do país, muitos asiáticos.

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Também com um ano de abertura, veio a primeira estrela do Guia Michelin. Em 2024, após o hiato do guia no país e depois do Lasai mudar de um restaurante para quase 50 pessoas e se tornar um balcão para 11, veio a segunda estrela.

Mesa do Lasai, no Rio de Janeiro
Mesa do Lasai, no Rio de Janeiro Imagem: Reprodução/Instagram

A constelação, porém, não tirou o jeito "sincerão" que já virou marca do chef: "obviamente, tem restaurante três estrelas que não merecia nenhuma, e o de uma estrela que merecia três", comenta.

A avaliação vem do tempo no também duas estrelas Mugaritz.

É vanguarda de verdade, eles descobrem novas técnicas, faz coisas que não existem. Durante um bom tempo, eu achei que era um dos restaurantes mais injustiçados no mundo por não receber a terceira estrela, opina.

Hoje, por ser experimental demais, Rafa acredita que a estrela a mais está distante dos colegas bascos.

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Feliz no "simplão"

Eu não tento experimentar nada, eu tento fazer comida boa. A gente joga um pouquinho com textura, com temperatura, com visual e tal. Mas assim, pra mim, o mais importante é que você coloque na boca e fale: 'isso tá bom'.

Produção do Lasai
Produção do Lasai Imagem: Lasai

A ambição é ser confortável, descontraído, "da galera ver o que você faz", de comer muito com a mão, de não obedecer a uma padronização ("se tá diferente de ontem ou vai estar amanhã, eu tô cagando. Tem que tá bom") e continuar semanas e semanas lotado, com reservas disputadas.

Mas se a condição para estar no 50 Best ou chegar à cobiçada terceira estrela Michelin for a de colocar toalha branca na mesa ou convidar supostos jurados, sai debaixo.

Pô, então eu não vou ganhar nunca, porque eu não gosto de toalha branca na mesa. Para mim, tanto faz o talher ser de inox, de prata, de bronze. Hoje em dia, pra mim, não é um negócio que a gente precise e não tenho muita paciência também.

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Ao mesmo tempo, Rafa reconhece que as premiações fazem parte do sucesso do restaurante e é pragmático quanto ao futuro do Lasai nas listas e guias.

No 50 Best posso te afirmar que a gente vai descer, porque a matemática é simples. A gente nunca fez evento, guest, mas as duas últimas edições latinas foram no Rio, muita gente foi ao Lasai e muitos devem ter votado na gente. Esse ano, sendo em outro lugar, é natural que a gente caia na lista, prevê.

A vista do balcão do Lasai
A vista do balcão do Lasai Imagem: Lasai

Sobre Michelin, Rafa se arrisca menos na futurologia. "Acho que 90% de chance da gente manter a segunda estrela, 10% da gente perder e 0% de ganhar a terceira", calcula.

E se perder? "A gente vai recuperar. Tomara que não, porque, comercialmente, é muito bom ter duas estrelas".

Se fosse para apostar no primeiro brasileiro três estrelas, Rafa acha que o Tuju, de Ivan Ralston e Katherina Cordás é o que está mais perto.

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Os chefs dos restaurantes que mantiveram as duas estrelas Michelin em 2025
Os chefs dos restaurantes que mantiveram as duas estrelas Michelin em 2025 Imagem: Divulgação

Mas deixa no ar um spoiler de matar qualquer um: "Talvez a gente possa ganhar com um projeto novo que a gente vai ter". "Que você não pode me contar nada", tento. "De jeito nenhum, nem uma pontinha".

Mas se Rafa foge das perguntas sobre futuro, o presente não está nada ruim.

Um Lasai "emassado"

Convidado a assumir o Bonaccia, Rafa teve a chance de realizar o desejo antigo de ter um italiano — foi nessa culinária que ele teve a primeira experiência, em NY — e via que tinha tudo a ver com o clima da Serra e a casa de campo que abriga um hotel boutique.

O chef Rafa Costa e Silva, Vinícius Maciel e Marina Guazelli, no Bonaccia
O chef Rafa Costa e Silva, Vinícius Maciel e Marina Guazelli, no Bonaccia Imagem: Rubens Kato
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"Apesar de minha família não ser cozinheira, fui buscar referências no passado e descobri algumas coisas, como o que comiam os avós maternos, nascidos na Sicília e Nápoles", conta.

Faltava, porém, confiança em assumir um restaurante de massas sozinho e, para isso, recorreu a Márcio Shihomatsu, sócio do Shihoma em São Paulo. E foi assim que Rafa tirou Marina Guazzelli da rota para a Dinamarca, brinca.

"Liguei pra ela e falei 'ó, é um lugar meio bucólico, meio diferente, não é Rio de Janeiro, não é São Paulo e tal. E tal, e tal, e tal. Você topa fazer isso?'", recorda Rafa.

Tortellini in brodo, do Bonaccia
Tortellini in brodo, do Bonaccia Imagem: Rubens Kato

Estudiosa das massas com passagem pela Itália e por uma referência na capital paulista, Marina topou, iniciou os testes no Lasai e fez nascer versões "emassadas" dos pratos do restaurantes estrelado.

O prato da abóbora e queijo de cabra ia no menu do Lasai sem a massa. O caldo do capelete de porco? É o que a gente faz no Lasai. O brócolis queimadinho? Também. Sem inventar, ser pomposo, sem ser fine dining, queria um italiano com um pouco de Lasai, descreve.

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Quem quiser xeretar a produção das massas, o laboratório de pastaio do Bonaccia está há uma curta caminhada do restaurante. Também de produção própria são os embutidos e pães. E o que não nasce lá, está ao redor - como o incrível alho-poró utilizado em um dos melhores pratos da casa, ou na produção da horta de Rafa, no Vale das Videiras.

Produção de massa no Bonaccia
Produção de massa no Bonaccia Imagem: Rubens Kato

Aberto há pouco mais de dois meses, a casa já está em pleno vapor.

O que muita gente pode não saber, porém, é que Rafa também tem vontade de ter uma steakhouse, "com carne, batata frita, hambúrguer e bem pouca verdura. De verdade mesmo. Chegar e comer bem", imagina.

E se esse sonho sair do papel, ele avisa: será no Rio.

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De short entre gênios

"Quase fui pra São Paulo no ano passado", surpreende. "Mas para minha família seria muito difícil."

Eu amo São Paulo, mas a minha vida hoje em dia é muito enraizada no Rio. Eu faço tudo de bicicleta elétrica. Eu deixo meu filho na escola, vou pro meu clube, faço minhas coisas, fico no Lasai. Não conseguiria não ficar de short o dia inteiro hoje em dia, brinca.

Rafa Costa e Silva, no Lasai
Rafa Costa e Silva, no Lasai Imagem: Lasai

Hoje tranquilo como o nome de seu restaurante, aos 46 anos, Rafa diz não ter pressa. E, ao contrário do que anuncia, tem ótima memória. Pelo menos quando perguntado qual foi sua refeição mais memorável.

Na última temporada do El Bulli, dois meses antes de eles fecharem pra sempre, Rafa estava na comitiva do Mugaritz ("também palco de refeições épicas") que visitava os Adriá.

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A gente chegou lá às sete horas da noite. Quando eu me dei por conta, era meia-noite e eu não tinha visto tempo passar. E eu tenho horror em ficar sentado muito tempo comendo. Foi fantástico, inacreditável. Você fala 'caralho, o maluco é um gênio', inicia.

E segue: "Foi uma coisa que me marcou muito, porque não é o tipo de comida que eu gosto, nem o tempo que eu gosto de ficar, mas foi um negócio que foi o momento, a galera, a equipe. Acho que provavelmente foi a refeição que mais me marcou", descreve.

E finaliza, claro (e ainda bem), ao modo "Rafa": "Depois a gente saiu, coisa de uma hora da manhã, e foi mergulhar na praia pelado".

*A jornalista viajou a convite da Casa Marambaia

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